Infâmia: sobre o preço de uma mentira e a dor da verdade

Um roteiro genial, a atuação de duas grandes atrizes consolidadas e de um jovem talento e três milhões e seiscentos mil dólares foram suficientes para um dos melhores e mais dignos filmes da carreira de Audrey Hepburn. “Infâmia” sequer cobriu seus custos de produção, tendo obtido singelos três milhões de dólares com a distribuição realizada pela United Artists. Não era de se esperar tanto de um filme que não só desafiava o percurso natural da cinematografia, insistindo no preto e branco numa época em que a novidade eram as cores vivas e chamativas, como também desafiava as restrições de uma sociedade ainda acostumada com os clichês hollywoodianos. As personas de Audrey Hepburn e Shirley MacLaine não foram suficientes para atribuir a “Infâmia” o sucesso que merecia na época.

Martha e Karen, interpretadas respectivamente por Shirley MacLaine e Audrey Hepburn 

“Infâmia” (William Wyler, 1961) ou “The Children’s Hour”, título em inglês, foi roteirizado por Lillian Hellman, autora da peça de mesmo nome, lançada 27 anos antes, e ainda hoje encenada, tendo sido sua última adaptação para os teatros estrelada por Keira Knightley e Elizabeth Moss nos papeis principais. Se pensarmos que a temática já era um tanto, ou muito complicada de ser digerida em 1961, imagine em meados dos anos 30, quando a menção a homossexualidade era ainda mais abominável.

Contudo, não é apenas a coragem de trabalhar com essa temática que faz de “Infâmia” um grande filme. Imagine você uma criança que não conhece limites, a ponto de destruir a vida de duas mulheres apenas por capricho, sem peso algum na consciência. Imagine ainda duas jovens professores terem suas vidas e carreiras arruinadas por uma mentira, que ganhou proporções midiáticas nacionais, ao ponto que se torna impossível até mesmo deixar sua casa para um passeio. Imagine se uma delas enfrenta conflitos pessoais e percebe em si mesmo algo que ela e todos ao seu redor julgam um erro, um pecado? Onde iria crepitar um cenário tão denso quanto este?

Mary Tilford (Karen Balkin) repete a sua mentira insistentemente

Martha Dobie (Shirley MacLaine) e Karen Wright (Audrey Hepburn) eram amigas desde os 17 anos, quando iniciaram a faculdade. Tiveram formação em na área de Educação e, em seguida, montaram sua própria escola para meninas, onde estudava a geniosa, mentirosa e inconsequente Mary Tilford, interpretada pela jovem e talentosa atriz Karen Balkin. Martha e Karen sempre foram próximas. A primeira nunca teve namorados ou se preocupou com casamento, apenas com a amiga, Karen, e a escola que construíram juntas. Karen, por sua vez, está prestes a casar e planeja ter filhos com o noivo, o médico Joe Cardin (James Garner). Quando sua aluna, Mary, conta, de forma aumentada, para a avó sobre uma conversa que escutou na escola, as proporções da mentira crescem a cada dia, até que, vinte quatro horas depois, Martha e Karen não tinham mais nenhuma aluna na escola.

O roteiro por si só já é uma obra prima e, aqui, parabenizamos o trabalho da roteirista Lilliam Hellman e do diretor William Wyler, que souberam como não se prender aos formatos do teatro e utilizar bem as ferramentas que o cinema lhes dispunham, tais como closes, de forma a exprimir bem a emoção dos personagens, cenas externas e transições de ambientes. Contudo, é impossível não atribuir boa parte do mérito da produção às interpretações de Audrey Hepburn e Shirley MacLaine, que parecem se complementar em cena. Audrey é a personagem doce, delicada, gentil e compreensiva, e Shirley é forte, mas também angustiada, e por vezes explosiva. É incrível como boas atrizes não precisam de muito para nos convencer e é o que acontece nesse filme, quando o principal é dito através de olhares. Um toque sutil, ou o ritmo de uma palavra, já diz mais que o suficiente para o espectador.

Costumam dizer que Audrey era moça recatada, que se recusava a relacionar seu nome com todo tipo de papel, e preferia não colocar em cheque a sua reputação. Eu discordo. Ela até pode ter recusado trabalhar com Alfred Hitchcock e suas insanidades, mas Audrey nunca teve medo de papeis perigosos no quesito social, por exemplo. A sua Karen Wright, uma mulher batalhadora, que procrastina o próprio casamento, e envolve-se em um escândalo para a época, é um exemplo disso, bem como, posteriormente, o papel pelo qual ficaria estigmatizada, a “café society girl” Holly Golightley, em Bonequinha de Luxo. Sua sensibilidade e a química com Shirley são fundamentais na composição da personagem. Contudo, o mérito maior do filme é indiscutivelmente de MacLaine, que chegou a ser indicada ao Globo de Ouro do ano. Sua atuação foi, não só corajosa, mas intensa e bastante convincente, provando, se é que ainda havia dúvidas, a sua competência enquanto atriz, ainda na casa dos vinte anos. A essa altura, contudo, ambas as atrizes já era premiadas, Audrey com um Oscar, e Shirley com outras estatuetas de menor visibilidade (Urso de Prata, Globo de Ouro e BAFTA), e uma indicação ao Oscar.

Audrey e Shirley com James Garner (Dr. Joe Cardin)

Não se pode ignorar a pequena (e sumida) Karen Balkin. Embora eu não tenha mais notícias de trabalhos posteriores, a garota faz uma atuação responsável em “Infâmia”. Um tanto exagerada, é verdade, mas bastante notável, em se tratando de uma criança. Já James Garner, como Joe Cardin, noivo de Karen, é completamente dispensável, se tornando quase invisível em algumas cenas.

Cartaz do filme

Quando terminei de assistir ao filme, foi impossível não relacionar o contexto com o caso da Escola Base, tão repetido nas escolas de jornalismo pelo Brasil a fora. Não só pelo fato de que uma mentira repercutida foi capaz de destruir a reputação e a vida social e profissional de duas pessoas, mas também pelo caso ter se passado no ambiente escolar. A irreversibilidade da situação fica clara na cena em que a avó de Mary, Amelia Tilford (Fay Bainter) vai até a escola, onde continuam morando Karen e Martha, perdir-lhes desculpas e promete retomar o caso para que o juiz dê a causa às professoras, e ainda lhes oferece uma indenização. Karen, contudo, branda que não querem dinheiro, e que nada poderá lhes restituir o que lhes fora tirado. Uma cena forte e comovente.

“Infâmia” é um daqueles filmes que ficam marcados, seja pelo roteiro, que sempre será atual, enquanto houver mentiras e casos de calúnias repercutidas na mídia, seja pelo dilema pessoal enfrentado por Martha, ou pelo gênio perigoso e inconsequente de Mary. Para o cinema, também é uma peça digna de ser cuidada e respeitada, arquivo do talento de grandes atrizes e do trabalho competente e compromissado de um excelente diretor, um dos mais indicados ao Oscar da história, convém dizer, tendo recebido quatro estatuetas da Academia. O que faltou no orçamento de “Infâmia”, foi compensado na vontade de trabalhar da equipe, que entregou uma obra grandiosa, principalmente, em sua essência.

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Andressa Vieira
Jornalista, cinéfila incurável e escritora em formação. Típica escorpiana. Cearense natural e potiguar adotada. Apaixonada por cinema, literatura, música, arte e pessoas. Especialista em Cinema e mestranda em Estudos da Mídia (PPgEM/UFRN). É diretora deste site.
Andressa Vieira

Andressa Vieira

Jornalista, cinéfila incurável e escritora em formação. Típica escorpiana. Cearense natural e potiguar adotada. Apaixonada por cinema, literatura, música, arte e pessoas. Especialista em Cinema e mestranda em Estudos da Mídia (PPgEM/UFRN). É diretora deste site.

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