Livros e HQ’s: A arte de perder na vida e obra de Elizabeth Bishop

Com estreia prevista para o dia 16 de agosto, o filme ‘Flores Raras’ (trailer oficial) de Bruno Barreto tem gerado certa ansiedade entre os amantes da literatura; particularmente, entre aqueles que gostam de literatura americana. Eu sou um desses e confesso que não vejo a hora de ver o filme que trata da história de amor entre a poeta Elizabeth Bishop e a arquiteta Lota de Macedo.

Bishop começou a se deslocar ainda muito cedo. Aos cinco anos de idade, foi levada pelos avós paternos da Nova Escócia, Canadá, para Massachusetts, Estados Unidos. Na década de 1930, morou alguns anos na França, depois na Flórida e em seguida em Washington, onde desempenhou o cargo de Consultora em Poesia da Biblioteca do Congresso Americano. Em 1951, em uma viagem de circunavegação da América do Sul, chegou a Santos, São Paulo. Embora tivesse a expectativa de permanecer no Brasil por apenas quinze dias, ficou por mais de 15 anos.

Cena do filme “Flores Raras”, em que Bishop é interpretada pela australiana Miranda Otto

Apesar de ter se dedicado principalmente ao trabalho de escritora, Elizabeth Bishop verteu para sua língua materna poemas de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e contos de Clarice Lispector. Essas traduções acabaram de certa forma influenciando sua obra poética, que mantém certas semelhanças com a de Drummond (MARTINS, 2006 [1]). Nessas aventuras tradutórias, ‘reescreveu’ em língua inglesa versos muito conhecidos da literatura brasileira:

“Poema de sete faces” de Carlos Drummond de Andrade Tradução de Elizabeth Bishop

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo,
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
Mais vasto é meu coração.

Universe, vast universe,
iF I had been named Eugene
that would not be what I mean
but it would go into verse
faster.
Universe, vast universe,
my heart is vaster.

“No meio do caminho” Carlos Drummond de Andrade Tradução de Elizabeth Bishop

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

In the middle of the road there was a stone
there was a stone in the middle of the road
there was a stone
in the middle of the road there was a stone.

Never should I forget this event
in the life of my fatigued retinas.
Never should I forget that in the middle of the road
there was a stone
there was a stone in the middle of the road
in the middle of the road there was a stone.

O que mais me impressiona em suas composições é o olhar sensível, marcado por uma capacidade impressionante de identificar pequenas sutilezas; detalhes que passam despercebidas para a maior parte das pessoas. De todos os seus poemas, o mais conhecido é One Art (Uma Arte), publicado no livro Geography III (Geografia III), três anos antes de sua morte, no qual fala sobre a arte de perder. Esse poema tem uma versão em português linda, recitado por Lúcia Sander e disponível aqui. Compartilho com vocês impressões sobre esse poema, retiradas de um meu ainda não publicado:

Casa de Bishop em Ouro Preto

O poema pode representar uma tomada de consciência de sua condição de viajante, que precisa desfazer-se, de tempos em tempos, de sua própria vida. Esse desfazimento recorrente não é feito com facilidade, como as repetições presentes no poema transparecem. É feito por alguém que, sem escolhas, simplesmente precisa continuar e, para isso, deve ‘perder’: três casas, que podem ser a casa de seus avós maternos, a casa de Lota de Macedo em Petrópolis, e a casa Mariana de Ouro Preto; duas cidades; dois rios; reinos, e, até mesmo, um continente. Todos perdidos. Para o eu do poema, as coisas já contêm em si o intento de serem perdidas, ou de serem retiradas dela, que não se acostumou com o pertencer e que, portanto, precisa se convencer de que o perder ou o ‘deixar passar’, nesse caso, é absolutamente necessário. As repetições de “The art of losing isn’t hard to master” [2] e de “is no disaster” [3] podem ser compreendidas como uma tentativa de convencer-se de que sua condição de eterna viajante não foi tão dolorosa. Essa percepção pode ser acentuada com o “Write it” do último verso do poema que funciona, pelo uso do imperativo e pelo deslocamento da frase, como um lembrete para si mesma – deixe passar e prossiga em sua arte, que como qualquer outra, exige disciplina e prática.

Por todos esses fatos, como não encontrar um elemento de identificação com o trabalho de Bishop? Quem nunca perdeu? Quem nunca amou? Quem nunca teve coisas importantes retiradas de si? Quem nunca se sentiu estranho? Não pertencente? Então, não há o que fazer… o negócio é esperar a estreia do filme. De qualquer forma, quem quiser saber mais sobre ela, recomendo o livro Duas Artes, já citado, e os seguintes poemas: Questions of Travel, versão em português aqui e The Burglar of Babylon. Em ambos, ela compartilha impressões sobre suas experiências no Brasil.


[1] Duas Artes: Carlos Drummond de Andrade e Elizabeth Bishop
[2]Tradução de Britto (2011): A arte de perder não é nenhum mistério. Uma tradução literal do fragmento pode ser “A arte de perder não é difícil de dominar”.
[3]Tradução de Britto (2011): Nada disso é sério. Uma tradução literal do fragmento pode ser “não é desastre”.

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Tiago Silva
Professor de línguas e literatura inglesa, apaixonado por literatura, música, cinema e por tudo aquilo que se pode fazer a partir disso. Escuta a mesma música milhares de vezes e adora viajar. Capricorniano com ascendente em aquários, vive uma permanente confusão entre a estabilidade e a racionalidade do primeiro e a imprevisibilidade e imaginação do segundo. Em outras palavras, é um caos.
Tiago Silva

Tiago Silva

Professor de línguas e literatura inglesa, apaixonado por literatura, música, cinema e por tudo aquilo que se pode fazer a partir disso. Escuta a mesma música milhares de vezes e adora viajar. Capricorniano com ascendente em aquários, vive uma permanente confusão entre a estabilidade e a racionalidade do primeiro e a imprevisibilidade e imaginação do segundo. Em outras palavras, é um caos.

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Carlos Cardoso
10 anos atrás

Achei o filme formidável. E fiquei muito curioso sobre a poesia desta grande mulher.
Onde encontro North & South — A Cold Spring para comprar?

Tiago Silva
10 anos atrás

Este comentário foi removido pelo autor.

Tiago Silva
10 anos atrás

Carlos, infelizmente, eu não encontrei o livro em nenhuma das livrarias virtuais brasileiras. Uma possibilidade é comprar do Amazon; os preços são geralmente menores e, por tratar-se de livro, não há taxa de importação. Contudo, o livro “Poemas Escolhidos de Elizabeth Bishop” traz uma compilação muito boa de poemas de diferentes livros e está disponível na maior parte das livrarias; comprei o meu na Saraiva. Os poemas desse livro foram traduzidos e selecionados por Paulo Henriques Brito, um super tradutor. Se você gostar de crítica literária, posso te encaminhar dois textos recentes sobre a poeta por e-mail.

Carlos Cardoso
10 anos atrás

Eu gostaria sim. Meu email é cardoso27@gmail.com

Abraços

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