Minha Lista Infinita de Filmes II: ‘O Homem Elefante’

David Lynch é uma figura popular no meio cinéfilo, mesmo que popular não seja o adjetivo mais adequado à sua obra. Acho que estranho seria o termo mais apropriado para tal. Mas uma estranheza encantadora e altamente acessível, apelando para sensações humanas profundas, muitas vezes carregadas de uma sinceridade que se contrapõe ao cinismo pós-moderno que predomina na obra de autores que flertam com o experimental e o surrealista. Há uma paixão pelo bizarro, que Lynch carrega do cinema de arte para o mainstream sem medo, encontrando uma audiência modesta, porém ávida por seu estilo.

Freddie Jones como Sr. Bytes: apenas mais um a explorar a miséria humana.

O Homem Elefante (1980) foi o primeiro passo de Lynch em um grande estúdio logo após seu filme de estreia (Eraserhead, que merece post particular futuro), conseguindo devido reconhecimento do público e da crítica em uma história que mantém uma visão que equilibra seu estilo peculiar com uma linguagem emotiva. Assim, demonstra carinho legítimo por figuras diferentes (que parecem grotescas ao “normal”), crias de sua imaginação que povoam a tela seja através de efeitos especiais, maquiagem ou simplesmente indivíduos com características físicas que se encaixam em sua visão.

O filme conta a história de John Merrick, (John Hurt), “o Homem Elefante”, um jovem que desenvolveu deformações corporais terríveis a partir da infância e que é forçado a “ganhar a vida” como uma atração de circo (no estilo freak show) em Londres no fim da Era Vitoriana. Através da amizade e do fascínio do médico Frederick Treves (Anthony Hopkins), Merrick é salvo da condição quase animalesca em que vive como propriedade do seu agente (?), alcançando algo semelhante a respeito e admiração da sociedade da época antes de falecer ainda aos 27 anos de idade. É uma história forte e de alto apelo emocional, que leva à inevitável reflexão não apenas entre o aparente e o inerente nas relações humanas, mas também na forma como o entretenimento (passado e atual) explora e ridiculariza a miséria humana através de diferentes interesses.

Anthony Hopkins como Frederick Treves.

No primeiro momento em que enxergamos Merrick, ainda na penumbra, percebemos ali um indivíduo alienado da condição humana e completamente degradado. Sua aparência transparece como uma maldição que o impede de ter uma vida normal e que torna o circo como sua única opção. Merrick produz rejeição e medo, mas também imensa curiosidade, fazendo com que inevitavelmente isso seja explorado por terceiros de múltiplas formas: primeiro como um show barato para populares, depois como um caso médico e por último como uma atração excêntrica para a elite londrina – “a besta deformada que, veja só, toma chá e cita Shakespeare”.

Desde a primeira cena recriminamos a figura vilanesca que se julga “proprietário” de Merrick, mas Lynch em momento algum se furta de mostrar o utilitarismo por trás mesmo das boas ações. O Dr. Treves busca fazer o bem a Merrick, retirando-o de uma condição sub-humana ao mesmo tempo em que usa o caso médico para alavancar sua carreira e ganhar notoriedade; o hospital que o acolhe em seus últimos anos de vida faz isso tendo a certeza de que há uma valorização desse esforço por parte da realeza e “olha que interessante, artistas e membros da nobreza passam aqui toda tarde para tomar um chá com Merrick. A deformidade de Merrick, que o define ao mesmo tempo que o impede de ter uma vida normal, acaba por lhe garantir notoriedade histórica.

O saudoso John Hurt, como Homem-Elefante, saindo das sombras.

Espetáculos de “aberrações” possuem um triste lugar na sociedade humana, geralmente atreladas ao circo e outras atrações itinerantes, em que pessoas com deformidades eram obrigadas a se sujeitar a todo tipo de humilhação como forma de ganhar a vida. Em sua versão contemporânea, temos programas de televisão exibindo essas pessoas durante o dia para audiências gigantescas – olhe só o coitadinho do menino peixe. Embora a repulsa do passado tenha sido substituída por um sentimento de pena, fato é que a curiosidade ainda garante uma audiência ao infortúnio dessas pessoas e leva a uma exploração de suas condições médicas.

Há hoje também um fascínio pelo grotesco no comportamento das pessoas e não apenas em sua aparência. Reality shows de humilhação e exposição existem aos montes. O ridículo e a miséria humana de pessoas e celebridades são explorados abertamente para grandes audiências. Mesmo com corpos perfeitos, bronzeados, sarados e siliconados, Big Brother nada mais é do que um espetáculo de horrores moderno em que a personalidade desequilibrada dos participantes torna o show “mais interessante”.

O filme de Lynch faz jus ao termo “baseado em fato reais”. Mesmo que muitos elementos da vida de Joseph Merrick (e não John, como no filme) sejam base para os acontecimentos do enredo, os fatos foram consideravelmente mais cínicos. O Merrick da vida real sabia do fascínio dos outros por sua aparência e ativamente explorava isso, em comum acordo com seus agentes – ao contrário da versão fictícia, explorada por pessoas sem escrúpulos. Por muito tempo foi seu ganha pão, ativamente procurando realizar acordos para esse fim.

E aí que entramos na discussão da ironia versus sinceridade. Dado os “fatos como aconteceram”, seria possível realizar um filme cínico, em que mostra Merrick em plena ciência de suas deficiências e sabendo explorar a repulsa do público – a tendência pós-moderna de desconstrução de heróis e da moralidade dá base a isso. Esta é a grande marca do cinismo pós-moderno, que dá asas ao pensamento e à arte irônica, algo que é excelente na desconstrução de paradigmas e no desvelo de hipocrisias, mas que esvazia a alma e o propósito da existência. Com seu reconhecimento do relativismo que condena o sentimento real, ironia é uma excelente forma de utilizar um espelho para mostrar as muitas falhas na arte e na sociedade. Eu adoro ironia, e adoro a tendência pós-moderna para desconstrução de paradigmas, mas é preciso entender que seu poder de criticar não é acompanhado pela proposição de soluções. Ironia é uma arma de destruição e que rejeita como “sentimentalista” qualquer tentativa de empatia real.

A obra de Lynch faz uso do surreal e bizarro, marcas pós-modernas, ao mesmo tempo em que mantém um coração, um genuíno amor pelos mundos estranhos que constrói. Mesmo em obras carregadas de paródia e ironia, como sua série Twin Peaks, há um claro carinho existente pelos personagens e pelo universo em que habitam.

Isso explica em grande parte a afirmação de Roger Ebert (um dos mais ilustres críticos de cinema de todos os tempos) de que “O Homem Elefante” abusa demasiadamente de sentimentalismo. E por um olhar irônico, sim, o filme parece excessivamente sentimental e apelativo. A questão é que Lynch nos leva a sensibilizar com uma pessoa que é vítima não de uma deformidade, mas de uma sociedade que se permite ridicularizar e explorar o sofrimento alheio. O que Ebert chama de sentimentalista, eu chamo de exercício de empatia, coisa que parece faltar muito em nossa sociedade.

Reza a lenda que quando Mel Brooks, rei dos filmes de comédia, viu Eraserhead ele sabia quem ele queria para dirigir “O Homem Elefante”, que estava começando a produzir. Mesmo com o sucesso crítico de sua estreia, Lynch ainda trabalhava na construção civil quando recebeu este convite. A moral de Brooks com o estúdio permitiu a Lynch filmar em belíssimo preto e branco, que enche o filme de potência e dá o tom lúgubre da Londres vitoriana, e ainda acrescentar as sequências surreais que abrem e encerram o filme. Em seu próximo filme, Duna (1984), Lynch não teve a mesma sorte, sofrendo grande influência do estúdio e produzindo seu filme mais fraco. Mas aos poucos, Lynch conseguiu fazer valer a sua visão, encontrando um público satisfeito com suas estranhezas e em refletir sobre o significado de sua obra.

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Diego Paes
Formado em Relações Internacionais, Mestre e talvez Doutor (me dê alguns meses) em Administração, mas que tem certeza de que está na área errada. Pode ser encontrado com facilidade em seu habitat natural: salas de cinema. Já viu três filmes no cinema no mesmo dia mais de uma vez e tem todas as fichas do IMDb na cabeça. Ainda está na metade da lista dos Kurosawa e vai tentar te convencer que Kieslowski é o melhor diretor de todos os tempos.
Diego Paes

Diego Paes

Formado em Relações Internacionais, Mestre e talvez Doutor (me dê alguns meses) em Administração, mas que tem certeza de que está na área errada. Pode ser encontrado com facilidade em seu habitat natural: salas de cinema. Já viu três filmes no cinema no mesmo dia mais de uma vez e tem todas as fichas do IMDb na cabeça. Ainda está na metade da lista dos Kurosawa e vai tentar te convencer que Kieslowski é o melhor diretor de todos os tempos.

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