GYPSY: sobra transpiração, falta inspiração

Em recente entrevista – após o cancelamento de Sense8 e Getdow – o CEO da Netflix afirmou que a empresa precisa assumir mais riscos; tentar mais coisas malucas e até mesmo ter uma taxa de cancelamento maior para comprovar sua postura ousada e inovadora com esses números. Confesso que existe algo de nobre em dar chance a novas ideias e novos roteiros, por mais absurdos ou tecnicamente fracos que pareçam. Me parece que os executivos por lá tem um coração de mãe que vê as boas intenções dos seus “filhos” e lhes dão uma chance.

Mas convenhamos que também é um tanto discutível fazer isso só para alguns episódios depois jogar o trabalho na “lata do lixo”, ou melhor, de propostas canceladas. Dar mais chances e desejar uma maior taxa de cancelamentos parece democracia disfarçada de ditadura. A Netflix vem alterando a ordem natural das coisas, a posição do filtro no processo. Em vez de julgar um trabalho pelo seu potencial artístico antes de aprovar sua produção, ela tem deixado mais coisas passarem por uma peneira bem larga e só após a série se sustentar economicamente ou não é que vem o filtro. Se essa postura é realmente ousada e inovadora, é algo para se refletir.

De qualquer forma, é esse direcionamento que vem permitindo que chegue ao público algumas séries de qualidade discutível. Séries com “bom coração”, repletas de boas intenções, mas que em última instância falham como produto artístico ou mesmo de entretenimento. Alguns deles, por um motivo ou outro, terminam por ser sucesso de público e recebem, assim, renovação automática para uma nova temporada. É o caso de 13 Reasons Why. Mas não deve ser o caso da nova série que estreou na última sexta-feira, Gypsy.

Anunciada como um thriller psicológico e com um elenco de peso, comandado por Naomi Watts, a série logo demanda atenção de qualquer um que ouça falar dela. Watts dá vida à terapeuta Jean Halloway, que parece ter como característica se envolver demais na vida dos seus pacientes. Como forma de tratá-los e conhecer melhor suas histórias (e pô-las à prova) ela acaba se envolvendo com pessoas próximas deles, criando triângulos perigosos que ameaçam não apenas sua carreira, mas também seu casamento com um reputado advogado vivido por Billy Crudup.

Gypsy Season 1

A história gira basicamente em torno do relacionamento dela com três pacientes: Sam, Claire e Allison. Sam a procura para se recuperar do traumático término com sua ex, Sidney, com quem Jean acaba se envolvendo. Claire tem problemas de relacionamento com a filha, com quem Jean também desenvolve um laço de amizade, buscando penetrar mais na mente das duas e decifrar suas motivações. Allison é uma jovem prodígio, que perdeu o rumo e se afundou no vício das drogas, com ela Jean tenta desenvolver uma relação maternal, provavelmente buscando alguma forma de reparação do relacionamento conturbado que ela tem com sua própria mãe.

O que já parecia ser fora do comum, passa do limite do insustentável quando Jean, assumindo o alter ego ‘Diane’ decide ir mais longe e criar situações que fazem o destino de todas essas pessoas – e também o seu – colidirem, criando altos riscos emocionais e mesmo físicos para os envolvidos. Conforme os episódios avançam, recebemos em doses mais do que homeopáticas informações do passado que indicam que esse não é um comportamento novo para Jean. E aí começa um dos muitos problemas da série, essas informações nos indicam alguma forma de explicação futura, que nunca chega, mesmo com a presença física de um personagem do passado no último episódio.

Numa nota confusa o episódio final se encerra com um discurso sobre bullying, justificado apenas pelo fato de Jean ser mãe de Dolly, uma adorável garotinha, que se vê como garoto, fato que a série trata muito rasamente como uma discussão de gênero (componente que parece ter se tornado obrigatório ultimamente, pouco importa se é discutido de maneira própria). O discurso, basicamente, empacota toda a temporada em uma premissa: a busca pelo poder como forma de controle, dos outros e de si mesmo. É aí que percebemos que tudo foi apenas um jogo para Jean conseguir vingança e satisfação pessoal. Nenhum dos seus pacientes está realmente melhor. Graças a ela, Sam nunca se recuperará completamente do término com Sidney. Claire continua afastada da sua filha e Allison continua nas mãos de um namorado traficante e viciado.

Tudo parece ter uma motivação profundamente egoísta. Se a série tem um mérito, é mostrar o psicólogo, não necessariamente de uma sociopata como Jean, mas como um ser humano, alguém que tem sentimentos e problemas reais, que não podem simplesmente ser extirpados do seu processo profissional. Essa é a boa intenção de que eu falei lá trás, lembra?! Mas no caminho, Gypsy se perde.

Existem bons momentos sim, especialmente na relação limítrofe entre Jean e Sidney, que prende o espectador nos primeiros episódios, mas que ao dominar a série emocionalmente e narrativamente, termina por tirar espaço de outros personagens e sub tramas importantes para entender e empatizar com a protagonista, tornando a história mais rasa.

Mas Gypsy peca principalmente pela falta de equilíbrio: entre momentos viscerais e atraentes e uma narrativa condizente; entre momentos de uma fotografia inebriante e outros completamente sem inspiração, assim como entre as facetas de uma protagonista mestra de tudo e frágil, que se alternam de uma maneira caótica. É verdade que já nos primeiros episódios Jean nos dá uma pista sobre a jornada que estamos prestes a embarcar. Em voice over ouvimos seus pensamentos: “E ainda assim, existe uma força mais poderosa do que o livre-arbítrio. O nosso Inconsciente”. Mas isso não é desculpa para tudo, faltam peças no quebra-cabeças de Halloway, especialmente sobre o seu passado condenável e como ela manipula seu marido e sua mãe, que aparentemente sabem de tudo, mas continuam deixando com que a história se repita.

Por falar no seu marido e na sua mãe, assim como em 13 Reasons Why, o roteiro está cheio de conveniências baratas. Personagens como Michael (Crudup), sua mãe, sua amiga Larin, um paciente (o único que aparece apenas uma única vez) e mesmo sua filha Dolly, servem única e exclusivamente como justificadores das ações da psicóloga, mas são tão mal explorados que acabam por não cumprir esse único papel como deveriam. Falta sutileza nas ações, nas motivações. Muita coisa está na cara e o que não está parece estar longe demais da nossa percepção. Dessa forma, o pouco mistério que é criado parece mais desleixo do que algo intencional e realmente envolvente.

Como de praxe para qualquer série, Gypsy deixa ganchos (e algumas enormes lacunas) para uma continuação. Mas a inércia que me levou até o último episódio não deve ser suficiente para levar a narrativa a uma próxima temporada e minha aposta é que mesmo com a talentosa Naomi Watts como chamariz, a série não deve ganhar uma renovação, satisfazendo um pouco mais o desejo dos executivos da Netflix ao aumentar a estatística de cancelamentos, dessa vez, justificadamente.

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Victor Hugo Roque
Victor Hugo Roque

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Eleonora Gonçalves
Eleonora Gonçalves
6 anos atrás

Sempre gostei da séries por que são muito interessantes, podemos encontrar de diferentes gêneros. De forma interessante, Lisa Rubin, criador da série, optou por inserir uma cena de abertura com personagens novos, o que acaba sendo um choque para o espectador, que esperarava reencontrar de cara as queridas crianças. Desde que vi o elenco de Gypsy imaginei que seria uma grande produção, já que tem a participação de atores muito reconhecidos, Pessoalmente eu irei ver por causo do actriz Naomi Watts, uma atriz muito comprometido (Os Filmes de Naomi Watts para Eles são uma ótima opção para entreter), além disso, acho que ele é muito bonito e de bom estilo. Não posso esperar para ver a nova temporada, estou ansiosa.

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