O Ickabog: O pequeno manual antifascista de J.K. Rowling

[dropcap size=small]O[/dropcap] que fazer quando o medo e uma ameaça invisível minam a infância de inúmeras crianças? No caso de J.K. Rowling, celebrada autora da série Harry Potter, resgatar uma história atemporal – mas que encaixa-se com ainda mais perfeição aos tempos modernos – para entreter, e ao mesmo tempo trazer à tona temas sociais necessários, soa como a melhor saída.

Do lado de cá, o cenário é o de Covid-19, reclusão, mortes e a batalha por um inimigo que parece se fortalecer, ainda que não o vejamos. Do lado de lá, no reino de Cornucópia, cidade imaginária onde se passa a história “O Ickabog”, a história não é muito diferente. Por meio uma metáfora que, segundo o prefácio do livro, já estava escrita há mais de dez anos, quando a autora ainda colhia os efeitos do auge da popularidade do mundo bruxo, Rowling utiliza da ludicidade e de um contexto infantil, mas capaz de dialogar com qualquer idade, para conversar sobre os efeitos da desinformação, do medo, do totalitarismo e da falta de liberdade de expressão.

Tudo começa com a morte de uma serva do rei e uma viagem despretensiosa onde os mais bravos cavaleiros reais acompanhariam Vossa Majestade, o rei Fred, à batalha fatal contra um ser mitológico do reinado, o Ickabog, um monstro sobre o qual todos ouviram falar, mas poucos viram, ou mesmo acreditam de fato na existência. Algo como o Bicho-papão ou a Cuca, se trazido para o nosso imaginário. Em meio a tropeços reais e tentativas de manutenção da imagem do intrépido Rei Fred, o mito cresce e logo transforma-se em uma bola de neve responsável por provocar terror, medo, infelicidade e ruína para os moradores das cidades da Cornucópia.

No quadro de uma história aparentemente pouco sensacional, alguns personagens e contextos chamam atenção pela forma como trazem questões sociológicas complexas para um roteiro infantil, trazendo subcamadas políticas e filosóficas para a obra.

O Rei Fred, por exemplo, mostra-se um personagem inapto para o cargo, fraco, egocêntrico e manipulável, um anti-modelo do que esperamos de um líder em momentos de crise, desbancando com a sua representação o estereótipo de reis fortes, inteligentes e destemidos aos quais estamos acostumados em histórias infantis e nos fazendo questionar sobre o que esperamos de um líder e quais características buscamos na hora de elegê-los (embora, neste caso, os habitantes da Cornucópia não tivessem escolha senão aceitar a linhagem real).

Lorde Cuspêncio, uma espécie de consultor do rei, sempre à frente na administração do reino, é um personagem caricato, desprovido de qualquer honra. Mostra-se maquiavélico, manipulador e é o responsável por subjugar e extorquir sem misericórdia os moradores da Cornucópia, retirando-lhes as condições mínimas de dignidade e, com isso, impossibilitando qualquer tentativa de confronto. Ele é a representação do fascismo institucionalizado e simboliza a transição de uma postura que em vez de segurança provoca medo.

Outros personagens dividem o posto de mártires e heróis. O Sr. Brilhante e a sra. De Pombal, por exemplo, representam a resistência dentro do sistema e, apesar de sequestrados e torturados, mantêm acesa a esperança e agem com cautela e paciência no contexto de sujeição à qual estão submetidos. Mas, claro, mantendo o praxe das narrativas infantis de J.K. Rowling, cabem a crianças e adolescentes o que se podem considerar os maiores atos de heroísmo para o “final feliz”.

A inteligência e determinação de Daisy de Pombal é a maior esperança de Cornucópia,  e cá entre nós, em muito nos lembra outra destemida personagem de Rowling, Hermione Granger. Bert Brilhante tem coragem e pensamento rápido, uma versão medieval de Harry Potter. Rodrigo Barata, por sua vez, nem sempre é rápido como os amigos, mas é leal e está disposto a lutar por seu povo e pelo que julga correto. Rony Weasley, é você?

Em “O Ickabog” temos uma clássica jornada do herói, algumas escolhas de roteiro surpreendem, outras não poderiam ser mais previsíveis, mas o que mais chama atenção em todo o livro é, de fato, o posicionamento político que fica claro a quem vive neste mundo e neste século. Sobretudo, àqueles que moram no Brasil, onde os Reis Freds e Lordes Cuspêncios se amontoam e ganham força com a nutrição de tantas farsas mitológicas.

Obs: Uma curiosidade é que o livro traz dezenas de ilustrações de crianças de vários estados do Brasil. A editora brasileira, uníssona a uma ação mundial, lançou concursos de desenhos e as ilustrações escolhidas tornaram-se as oficiais do livro. O livro foi divulgado gratuitamente na internet durante a pandemia, antes do seu lançamento físico. Uma iniciativa louvável de uma autora que reforça a sua grandiosidade a cada obra lançada. 

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Andressa Vieira
Jornalista, cinéfila incurável e escritora em formação. Típica escorpiana. Cearense natural e potiguar adotada. Apaixonada por cinema, literatura, música, arte e pessoas. Especialista em Cinema e mestranda em Estudos da Mídia (PPgEM/UFRN). É diretora deste site.
Andressa Vieira

Andressa Vieira

Jornalista, cinéfila incurável e escritora em formação. Típica escorpiana. Cearense natural e potiguar adotada. Apaixonada por cinema, literatura, música, arte e pessoas. Especialista em Cinema e mestranda em Estudos da Mídia (PPgEM/UFRN). É diretora deste site.

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