O Estilo de Barry: dirigindo comédia visual

Existem três grandes áreas para análise fílmica: tema, narrativa e estilo. Nos meus dois textos anteriores (Homem-Aranha e Septo) mantive o foco na narrativa. É hora de uma mudança,  é hora de falar sobre estilo, em outras palavras, é hora de falar sobre diretores! Irei aproveitar os indicados ao Emmy desse ano para essa análise. Na categoria de melhor direção em série de comédia temos duas indicações para segunda temporada de Barry (HBO) pelos episódios Ronny/Lilly e The Audition, dirigidos por Bill Hader e Alec Berg respectivamente. Ambos são criadores e roteiristas da série, e Hader é o ator principal, multi-talentosos, mas hoje falarei da direção. 

É um caso interessante para análise de direção na TV, pois essa costuma ser o lar dos roteiristas, tanto que eles que são creditados como criadores, muitas vezes atuando também como Showrunner, mas alguém obviamente deve dar vida aos roteiros, e geralmente temos um time de diretores para o trabalho. Normalmente o diretor deve manter o seu trabalho no estilo da série, ele está subjugado às decisões dos Showrunners, mas em Barry, Hader e Berg são os criadores, sendo assim, possuem maior liberdade, sem dúvidas executivos da HBO e as práticas de produção televisiva interferem, mas não entraremos nesse caminho hoje.

É o diretor que toma as decisões criativas em uma produção, como o filme irá ficar é resultados das sua personalidade e técnicas, e o estilo é sua principal arma. Mas afinal o que seria estilo? É tudo e mais um pouco. Quatro fundamentos compõem o estilo fílmico: mise-en-scène, cinematografia, montagem e som. Creio que a mise-en-scène seja o termo menos conhecido do público, mas contempla tudo que está no plano, ou seja, cenários, figurinos, maquiagem, iluminação, efeitos especiais e encenação. E é justamente a mise-en-scène que será um dos dois focos de nossa análise, a outra será a cinematografia. 

Nessa primeira parte iremos analisar o confronto entre os personagens Barry e Ronny, cena inicial do episódio Ronny/Lilly (S02E05). A maior parte do humor do episódio se dá de forma visual, se utilizando principalmente do cenário e encenação na construção das piadas, a câmera desempenha um papel fundamental também (cinematografia), criando um estilo naturalista, embora na verdade tudo seja extremamente calculado. 

O episódio começa com um plano geral (figura 1.1) de uma casa e temos a chegada de um carro com o personagem Ronny carregando um pacote de cervejas, a sonoplastia que já inicia nos créditos é de passarinhos, é interrompida apenas por uma música no rádio do carro, que para imediatamente quando ele o desliga. O plano seguinte é uma panorâmica dentro da casa de Ronny, também em plano geral, as ações do personagem continuam mundanas, sem trilha, a sonoplastia novamente atua aqui, um barulho chama atenção de Ronny que vai à janela, a câmera o acompanha. Os padrões de movimentação da câmera serão cruciais na análise desse episódio. Dentro desse segundo plano temos os dois padrões que vão moldar o estilo: o primeiro, a câmera se movimenta sem uma motivação aparente, não está acompanhando a ação, mas nos quer mostrar algo; o segundo, a câmera se move acompanhando a ação, é motivada. No texto iremos nos referir a tais padrões como câmera não-motivada e câmera motivada. 

Figura 1.1 plano 1

O terceiro plano mantém o padrão da  panorâmica motivada em plano geral enquanto Ronny anda pelo quarto. Os três planos iniciais atuam na criação de “um dia na vida”, mostrando ações triviais, com câmera distante e sem trilha, um olhar documental. O humor se dará daqui pela frente pela quebra desse padrão ou pela continuação de uma maneira inusitada. Temos a primeira quebra de padrão no plano 4, um plano médio de Ronny, novamente algum som vindo de fora do plano influencia as ações, aqui ouvimos Barry, o protagonista da série, um o assassino profissional que quer ser ator, não o vemos ainda, apenas o escutamos. Barry disse foi enviado para matá-lo, mas não o fará, e diz o seu plano, a reação de Ronny continua dentro do padrão anterior, como se aquilo fosse algo banal do dia-a-dia, o contraste da atuação com a situação gera o humor na cena. Dentro da forma fílmica todos os elementos têm uma  função, e tais elementos se repetem criando padrões, os chamados motifs, tanto a repetição quanto quebra dos motifs tem uma função dentro dentro da obra, criando assim um desenvolvimento estilístico, a fim de criar uma unidade para obra. Em apenas quatro planos já pudemos identificar padrões em Barry e como as suas quebras levam a um desenvolvimento do episódio como unidade fílmica. 

O plano 4 continua ( figura 1.2), Barry entra em cena com a câmera se ajustando para o enquadrar e o depois o acompanhando até a janela. Barry usa uma máscara vermelha e um visor, ocultando praticamente toda a sua expressão facial, seu uniforme de assassino é engraçado, mas também teremos um desenvolvimento em relação ao rosto e figurino de Barry ao decorrer do capítulo, como o texto será apenas da cena inicial não descreveremos tal evolução, mas fica o apontamos para análise do leitor. 

Figura 1.2 plano 4

Pulemos agora a sequência de ações dos planos 9 a 16. O humor da cena irá funcionar primordialmente de forma visual, e será um prenúncio do que ocorrerá em seguida. Humor e suspense juntos, excelente! Uma porta se abre, levando ambos personagens a outra sala, Ronny continua com a mesma postura, e ainda fumando, Barry entra logo atrás dele, mas vê algo que lhe causa apreensão, mesmo praticamente sem poder se expressar facialmente, a encenação corporal de Barry nos passa esse sentimento, novamente algo fora do plano afeta os personagens, ainda não sabemos o que seja. O plano seguinte nos dá uma panorâmica da sala, são diversos troféus e um kimono na parede, o movimento não é motivado por algo no plano, mas possivelmente a partir de um ponto de vista de Barry. Voltamos a Barry que continua assustado, que pergunta de quem são aqueles troféus, temos agora um plano geral da sala repleto deles, Ronny apenas sinaliza que são dele. Ronny com a mala na mão caminha para outra sala passando tranquilamente por Barry, que ainda fica na sala, e no plano 16, temos Barry cercado pelos troféus ( figura 1.3), assinalando seu possível destino e humor no público. 

Figura 1.3 plano 16

No plano 17 temos novamente a câmera motivada que acompanha Barry, panorâmica em plano geral, Ronny continua a agir do mesmo jeito, arruma a mala tranquilamente e pergunta se pode pegar as coisas no banheiro, todos os padrões anteriores voltam aqui, mas com um motivo: a quebra repentina deles com o chute de Ronny em Barry, ação anunciada pela mise-en-scene da sala de troféus. A ação do chute é finalizada no plano seguinte (plano 18), onde se inicia um plano-sequência de quase três minutos de duração.  Em um plano-sequência dois elementos do estilo fílmico se destacam, a mise-en-scène e a cinematografia, exatamente o que estamos analisando, e especificamente neste plano iremos observar a encenação e o movimento de câmera. 

É uma cena de ação, de vida ou morte, e ao mesmo tempo gera humor. O chute de Ronny aparentemente nocauteou Barry, este por sua vez volta a seu padrão de comportamento, acende um cigarro e começa a fazer uma ligação (encenação), a câmera se movimenta e enquadra apenas ele, só que o que está fora de quadro e tão importante quanto o que está dentro de quadro. Inclusive este é um motif recorrente no episódio, ações ou sons fora de quadro interferem no que está sendo mostrado. Dito isso, Barry surge no plano atacando Ronny e a luta continua. A luta em si quebra várias expectativas, seja de gênero, ou do próprio episódio. Não é uma coreografia de filme de artes marciais, mesmo Ronny sendo campeão em uma, na verdade nos primeiros momentos ele já demonstra cansaço, não consegue levantar nem a perna para um chute (figura 1.4). A luta segue com os dois se agarrando e quebrando os móveis. 

Figura 1.4 plano 18

Quero destacar agora o uso da câmera durante a luta. Não temos aqui uma câmera dinâmica que acompanha a ação, na verdade ela é o oposto disso, ela demora em seus movimentos para mostrar os personagens, quando eles entram no banheiro ela não acompanha, podemos apenas escutar a luta, e finalmente quando eles atravessam o quarto e caem do outro lado da cama,  ela lentamente nos mostra o estrago no local, até que enfim nos mostrar ambos no chão. É a câmera não-motivada, a forma do seu uso nos dá uma experiência diferenciada da luta, uma visão pessoal do diretor juntamente com o domínio da técnica nos presenteia com algo realmente cinematográfico. Nos planos seguintes o confronto se encerra com uma não-luta. Ronny vai a outra sala e pega nunchakus, Barry simplesmente desiste e se senta no chão, Ronny acaba sufocando pelo golpe anterior e cai no chão, aparentemente morto. Novamente todo o humor se dá de forma visual.  

Em apenas uma cena pudemos identificar como o diretor usa certas ferramentas estilísticas para atingir determinado efeito no público, seja uma simples panorâmica ou uma atuação contrastante. Encorajo o leitor a fazer a análise do resto do episódio, identificando padrões e os propósitos deles. O foco aqui foi na mise-en-scène e na cinematografia e alguns comentários sobre som. A montagem ficará para a segunda parte dessa análise, onde o objeto será outro indicado na categoria de direção em comédia do Emmy 2019, Fleabag com o primeiro episódio da sua segunda temporada.

Compartilhe

Jonathan De Assis
Acredita piamente que o Pink Floyd é a maior banda de todos os tempos e que ninguém canta melhor que o Robert Plant. Tem o Scorsese como ídolo máximo e sabe que ele transformará o DiCaprio no novo DeNiro. Com Goodfellas aprendeu as duas coisas mais importantes da vida: Nunca dedure seus amigos e mantenha a boca sempre fechada.
Jonathan De Assis

Jonathan De Assis

Acredita piamente que o Pink Floyd é a maior banda de todos os tempos e que ninguém canta melhor que o Robert Plant. Tem o Scorsese como ídolo máximo e sabe que ele transformará o DiCaprio no novo DeNiro. Com Goodfellas aprendeu as duas coisas mais importantes da vida: Nunca dedure seus amigos e mantenha a boca sempre fechada.

Postagens Relacionadas

Rugido_2
Lista: 3 séries feministas para assistir na Apple TV+
Não é de hoje que sou entusiasta emocionada do streaming da Apple, o Apple TV+. Dentre os motivos, estão...
foto da revista capituras
Capituras: revista cultural potiguar com foco em produção de mulheres é lançada
O Rio Grande do Norte acaba de ganhar a primeira revista cultural com foco na produção artística realizada...

Deixe uma resposta

0 0 votes
Classificação do artigo
Subscribe
Notify of
guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments
0
Would love your thoughts, please comment.x