Os Amantes Passageiros: Almodóvar retoma ao escracho para escancarar a sexualidade humana

Diretores versáteis como Pedro Almodóvar fazem falta à cinematografia mundial. Quem diria que, depois de ter seu primeiro filme de suspense, “A Pele que Habito”, aclamadíssimo pela crítica, o espanhol retornaria as comédias? Ainda mais quando sua última obra do gênero, Kika, completa exatos 20 anos que chegou às telonas. Mesmo assim, é bom chegar aqui pra dizer que Almodóvar não perdeu a mão nas comédias e nos oferece a escrachadíssima “Os Amantes Passageiros”, que chegou aos cinemas do Rio de Janeiro em Junho, três meses antes do previsto.

Os comissários de bordo dublam a música “I’m So Excited” para animar os passageiros

Desde que fiquei sabendo do filme, na seção “O que esperar” daqui do blog, já fui me preparando para ver, mais uma vez, a “El Deseo” apresentar um excelente filme. Alguns dos elementos almodovarianos já são bem explorados no trailer, mas “Os Amantes Passageiros” tem outras propriedades, especialmente uma metáfora única e muito bem construída: a trama é ambientada num voo, que sai de Madri com destino à Cidade do México, cujo trem de pouso quebra e os comandantes são orientados a voar em círculos até encontrar emergencialmente uma pista, evitando dessa maneira um acidente. É lógico que toda essa situação tem a ver com a situação que a Espanha, sem rumo e com perigo iminente de um crash econômico, enfrenta desde a crise mundial de 2008.

Diante da ameaça de acidente aéreo e com as opções de entretenimento desligadas por segurança, três comissários de bordo (lê-se: três bichas pintossérrimas) tentam entreter os passeiros da classe executiva . E aí vale tudo:  de uma perfomance afetadíssima da música “I’m So Excited”, das Pointer Sisters, uma espécie de Destiny’s Child, até a alucinógena mescalina nas bebidas. Com os exageros, o próprio Almodóvar teve de admitir em entrevista que este é o seu “filme mais gay”. Contudo, os estereótipos – aqui utilizados exclusivamente como elementos cômicos, sem ofensas – não ficam restritos aos homossexuais. O piloto, interpretado pelo ator Antonio de la Torre e o copiloto, por Hugo Silva, são respectivamente bissexual e heterossexual, mas infelizes no casamento e por isso se consolam nos braços (braços mesmo???) de um dos comissários; já o trio principal é formado pelos atores Javier Cámara (que já trabalhou com o diretor em “Má Educação”), Carlos Areces e Raul Arévalo, protagonizando excelentes atuações em comédia.

Cartaz oficial do filme no Brasil

Os demais tripulantes também têm histórias bem esdrúxulas, ao gosto do diretor que gosta de explorar os limites do sexo: entre eles, há uma vidente – interpretada por Lola Dueñas, uma queridinha do diretor – nada usual que quer perder a virgindade; um casal que faz do voo o próprio local da noite de núpcias; e também uma dominatrix – vivida por Cecília Roth, outra figurinha (excelente) do Almodóvar – que para sobreviver, ameaça publicar vídeos eróticos de políticos espanhóis. Porém, o núcleo da personagem psicopata interpretada por Paz Vega, único que não está nos ares, é completamente desinteressante devido à escolha pela ambientação do filme quase que permanentemente dentro do avião.  Cria-se a sensação que o diretor não teve criatividade suficiente para mais um papel espalhafatoso e o encaixou em qualquer lugar. Antônio Banderas e Penélope Cruz, conhecidos por protagonizarem muitos dos filmes de Almodóvar, dessa vez fazem apenas uma participação especial, mas fundamental para o desenrolar da história.

É sabido que Almodóvar, tipicamente espanhol, adora cores fortes. Para reproduzir com fidelidade a padronização do setor aéreo mundial, porém, o diretor teve que fazer algumas adaptações. Assim, as cores fortes aparecem especialmente nos figurinos de alguns passageiros da classe executiva e na “bagunça religiosa” pessoal do comissário interpretado por Carlos Areces. Também estão presentes nas animações que apresentam o elenco e nos créditos. Quanto à trilha sonora, mais um elemento bem trabalhado, o destaque fica para uma brincadeira com a música clássica de Beethoven – “Pour Elise” é modificada para ficar tipicamente espanhola – e para as músicas da era Disco que, junto com a abordagem despretensiosa do sexo e das drogas, revelam uma espécie de saudosismo dos anos 80.

Cecília Roth, atriz que sempre trabalha com Almodóvar, interpreta uma dominatrix

Com um roteiro bem ácido e de fácil compreensão, Almodóvar faz uma boa fórmula para os espectadores rirem do  conservadorismo hipócrito, seja ele manifestado na sociedade ou na economia. O tom da comédia é acentuado pela boa descrição das personagens, que acreditam estar fazendo suas últimas lamúrias e – para isso – decidem exagerar sem limites. Obviamente, não dá para comparar “Os Amantes Passageiros” com obras premiadas do diretor espanhol, as quais propõem profundas reflexões sobre variados tabus.  Ingênuo é aquele que propuser isso, mas defronte da massificação de comédias encomendadas, “Os Amantes Passeiros” é um dos melhores filmes do gênero nos últimos anos.

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Vinícius Vieira
Sagitariano carioca que mora em Natal. Jornalista formado pela UFRJ e UFRN. Apaixonado por cinema, praia e viagens.
Vinícius Vieira

Vinícius Vieira

Sagitariano carioca que mora em Natal. Jornalista formado pela UFRJ e UFRN. Apaixonado por cinema, praia e viagens.

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