Transmídia em storytelling: quando a narrativa é traduzida

Segundo Jeff Gomez, um dos maiores nomes envolvidos com a adaptação de obras para o cinema, transmídia em storytelling é “a arte e a técnica de transmitir mensagens, temas ou histórias através de diferentes plataformas de mídia”. Um produtor de roteiros transmídia, portanto, seria o responsável por captar a essência de uma obra e transpô-la (feitas as devidas adaptações) para outra mídia. Exemplos são uma obra literária que é adaptada (ou traduzida, visto que se tratam de linguagens) para o cinema, um HQ que vira filme, um livro que vira HQ ou ainda um filme que vira game. As possibilidades são várias no campo da transmídia.

Anne Hathaway e Meryl Streep em “O Diabo Veste Prada”, adaptação cinematográfica do livro de Lauren Weisberger

É necessário para o consumidor de produtos transmídia saber que a obra não é simplesmente transposta de uma plataforma para a outra, com lealdade máxima de conteúdo. Não funciona assim. Basta pensar em um texto em inglês que devemos traduzir para o português: algumas palavras são traduzidas sem complicações; outras expressões são um pouco mais complicadas e acabamos tendo que fazer adaptações para conseguir usá-las; algumas, ainda, são praticamente intraduzíveis e então o responsável tenta passar a essência do trecho adiante, ainda que com palavras completamente diferentes. O mesmo acontece quando uma outra mídia serve como base para um texto cinematográfico.

O Rei dos Reis (Cecil B. DeMille, 1927), uma das várias adaptações dos evangelhos bíblicos que contam a história de Jesus Cristo

Tendo como base os filmes da saga Harry Potter (2001 a 2011), por exemplo, é bem comum encontrar fãs julgando a qualidade do filme pela semelhança de seu roteiro com relação ao filme. O que eles não sabem é que, muitas vezes, descrições de vários parágrafos da autora J. K. Rowling precisam ser resumidas a dois ou três segundos no filme. Diálogos de duas páginas podem ser contraídos para a metade das palavras, ou mesmo serem descartados na adaptação cinematográfica. Os espectadores desse tipo de filme, em geral, procuram mais efeitos e agilidade em cena e não costumam ter muita paciência para conversas longas entre os personagens. Isso explica, por exemplo, porque as cenas do “quadribol” (esporte bruxo de equipe), sempre eram alargadas. A ação chama a atenção desse público em específico. Contudo, as histórias da escritora britânica são marcadas pelo excesso de detalhes. Rowling atiça a curiosidade do leitor a cada página e nova revelação do mundo de Harry. É impossível que tudo isso caiba em duas horas (ou pouco mais) de filme. E aí residiu a maior dificuldade da equipe: recontar a história, de forma mais resumida, e sem deixar nenhuma das suas pontas soltas.

Cena do esporte Quadribol, no filme “Harry Potter e a Câmara Secreta” (Chris Columbus, 2002)

Outro exemplo de transmídia em storytelling é a adaptação de 2011, dirigida por Steven Spielberg, da revista em quadrinhos belga “Tintim e o segredo do Licorne”, escrita por Hergé. Analisando apenas o início das duas obras, percebemos uma diferença de ritmo e até mesmo dos acontecimentos narrativos. A principal diferença, penso, esteja na elipse presente desde o início do quadrinho (já que é subtendido que o leitor já conheça algumas situações e personagens partindo de um provável contato prévio com outros números das aventuras do jornalista), enquanto no filme há uma necessidade de explicação e apresentação dos personagens, inclusive do próprio Tintim. Isso se dá pelo fato de que o filme é (e deve mesmo ser) um produto independente. Ninguém é obrigado a ter lido determinada obra para conseguir compreender um filme.

Cena de As Aventuras de Tintim (Steven Spielberg, 2011)

No caso da obra de Spielberg, uma de suas características mais marcantes é a animação em 3D. Tratava-se de um show de exposição de um produto ainda novo nas prateleiras do cinema, então Spielberg procurou garantir que ele seria muito bem utilizado. Dessa forma, outra adaptação necessária para a tradução dos quadrinhos para as telonas foi uma ornamentação maior das cenas. Enquanto nos quadrinhos as coisas acontecem de forma mais direta, sem muitas voltas, no cinema, Spielberg fez questão de acrescentar elementos variados de ação para tornar as cenas mais dinâmicas e provocar o show de câmera que precisava vender.

“Drácula, de Bram Stoker”, adaptação dirigida por Francis Ford Coppola do livro homônimo

O último exemplo de transmídia é Faroeste Caboclo, um filme brasileiro de 2013 dirigido por René Sampaio. O filme se vende com a divulgação de ser a versão cinematográfica de uma música de nove minutos da banda Legião Urbana. Apesar de longa, não e suficiente para um roteiro completo de um filme, então, o que era um verso, transformou-se em uma cena inteira ou mais de uma, e vários elementos tiveram de ser acrescentados para preencher o filme.

Faroeste Caboclo (René Sampaio, 2013) é uma adaptação da música de Renato Russo

Um bom produto transmídia, reitero, não é aquele que se mantém leal ao produto original, por mais que autores e fãs insistam nisso, mas o que consegue ser bom apesar do produto original. É o que deixa sua marca própria para que as pessoas possam pensar nele como um grande filme, de forma independente, e não como uma parcela de um box sobre determinada temática.

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Andressa Vieira
Jornalista, cinéfila incurável e escritora em formação. Típica escorpiana. Cearense natural e potiguar adotada. Apaixonada por cinema, literatura, música, arte e pessoas. Especialista em Cinema e mestranda em Estudos da Mídia (PPgEM/UFRN). É diretora deste site.
Andressa Vieira

Andressa Vieira

Jornalista, cinéfila incurável e escritora em formação. Típica escorpiana. Cearense natural e potiguar adotada. Apaixonada por cinema, literatura, música, arte e pessoas. Especialista em Cinema e mestranda em Estudos da Mídia (PPgEM/UFRN). É diretora deste site.

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