O ano era 1942. Estreava um dos maiores clássicos do cinema mundial: Casablanca. O filme narra a história da longínqua cidade de Casablanca, um território francês localizado no Marrocos, durante a Segunda Guerra Mundial. A trama gira em torno de dois ex-amantes que se reencontram depois de anos e discutem como a vida poderia ter sido caso eles tivessem ficado juntos, desenvolvendo-se a partir do triângulo amoroso entre Rick (Humphrey Bougart), Ilsa (Ingrid Bergman) e Victor Lazlo (Paul Heneid). O personagem de Bogart foi namorado de Ilsa anos atrás, porém ela o largou para viver com Victor. Agora, morando em Casablanca, Rick se vê num dilema: ajudar o marido da mulher que ama a fugir do nazismo ou reconquistá-la.
Dirigido por Michael Curtiz e vencedor de três Óscars (melhor filme, melhor diretor e melhor roteiro adaptado), o filme – além de ter virado um clássico – popularizou a canção As time goes by e deu status de estrela a Ingrid Bergman e Humphrey Bogart. O figurino, sob responsabilidade do experiente Orry Kelly, também responsável pelo vestuário em Quanto mais quente melhor e An American In Paris, possui peças clássicas baseadas no militarismo.
Era a década de 40, o mundo estava em crise, havia racionamento de tecido e poupar era a regra. As mulheres deixaram de ir ao salão e usavam com frequência chapéus para esconder o “bad hair day”; já os homens investiam em fardas militares, já que eram frequentemente recrutados para a guerra.
Os figurinos das personagens são utilitários e maleáveis. A protagonista Ilsa é caracterizada como uma mulher forte, clássica e muito elegante. Ela oscila entre dois tipos de personagens: a prática e a lady glamourosa. No começo da narrativa, a personagem de Bergman apresenta-se como prática, usando ternos que destacavam sua beleza e status. Ilsa é fina e mostra isso no traje. Ela usa majoritariamente terninhos femininos de duas peças: a saia midi enviesada na altura do joelho e blusas fechadas com um decote modesto, que dão um ar de praticidade a personagem.
No decorrer da trama, vemos Ilsa explorar mais o corpo usando vestidos longos acinturados, véu, luvas e blusas listradas – uma clara referência ao território francês a qual a cidade pertencia. O estilo navy (ou listras) foi popularizado pela estilista Coco Chanel na década de 30 e fazia parte da indumentária da marinha francesa. Hoje, a peça é sinônimo de estilo e estereótipo francês na TV e no cinema. Ilsa é delicada e isso é encontrado nas roupas dela a partir dos broches, pequenas estampas em blusas e vestidos e acessórios para o cabelo. A personagem também não usa maquiagem carregada, o que contribuiu com o ar angelical dado a ela.
Victor Laslo, marido de Ilsa, usa terno. É um sujeito elegante e que lembra o estilo inglês de se vestir.
Já o personagem Rick (Humphrey Bogart) é um americano de caráter duvidoso que, depois de sofrer uma desilusão amorosa na França, se muda para Casablanca e se torna um homem de negócios, administrando um bar. As peças que o caracterizam são trench coats, terno branco e chapéu.
O trench coat (popular sobretudo) – uma das peças mais icônicas do gênero noir – chama bastante atenção em um filme no qual o vestuário masculino no filme se resume a ternos ou à indumentária militar. A peça de uso comum em histórias de policiais, gângster e detetives roubou a cena no filme e compõe o traje do protagonista Rick. Ela nasceu da ideia de um soldado inglês em criar um casaco que fosse resistente enquanto ele estivesse nas trincheiras durante os combates do século XIX. A roupa é literalmente um casaco de trincheira e alcançou popularidade na primeira guerra mundial quando militares a usaram no conflito.
Entretanto, é por causa da cultura pop que ela é mais lembrada. A roupa é associada ao traje principal de policiais e gângster das histórias noir, além de detetives como o magnífico Sherlock Holmes e o professor Bugiganga. O trench coat denota a ideia de seriedade, heroísmo, mistério e jogo de sedução. É uma peça que acentua a virilidade das personagens. Além do trench coat, o chapéu Fedora também é uma forte referência ao estilo de personagens de gangsters ou detetives.
Outra peça bastante icônica no filme é o terno branco usado por Ricky durante o filme. É uma peça que é bastante parecida com o uniforme dos garçons que aparecem na história. Porém, o traje vestido por Ricky tem mais refinamento e conversa com a narrativa de maneira clara. O personagem de Bogart é americano, não se envolve com política e é boêmio. O terno diverge dos demais personagens, mostrando que na trama Ricky e o seu local de trabalho – o bar – tem a função de ser a oposição ao que realmente acontece na narrativa. O bar é simbolicamente retratado como o paraíso onde não existe bem ou mal; apenas diversão e negócios ilícitos ou não.
Assim, conclui-se que Casablanca é um filme político que utiliza o figurino como elemento principal para contar a história dos personagens da própria narrativa através do viés do vestuário.
Orry Kelly – O figurinista do Old Hollywood
Orry Kelly foi um experiente figurinista australiano vencedor de três Óscars por An American in Paris (1951), Quanto mais quente melhor (1959) e Les girls(1957). Kelly é considerado um dos melhores do ramo, tendo realizado quase 300 trabalhos ao longo de sua carreira profissional.
Ele é conhecido por ter estabelecido longa parceria com a estrela Bette Davis nos estúdios Warner. Também trabalhou na Broadway e lá conheceu o ator iniciante Cary Grant, com quem viria ser colega de quarto no início da carreira.
O documentário Women he’s undressed (2015), do diretor australiano Gilliam Armstrong, conta a história do figurinista australiano, seu trabalho e mostra raros materiais do artista.
Se você ainda não viu o trabalho desse magnifico figurinista, não pode deixar de assistir ao filme Casablanca. Esse clássico vai mostrar como o contexto sociopolítico influencia o vestuário de uma época.
Estudante de jornalismo, aspirante a figurinista e fã incondicional de Grace Codington, Anna Wintour, Nina Garcia e Miranda Priestly.
Frase favorita: “That’s all” .