Ao ler “À Meia-Luz”, da escritora potiguar Denise Medeiros, me veio à mente uma lembrança de botequim: “Ai de quem se descobrir amando, pois não sabe da missa um terço”. Foi isso que ouvi certa vez de um amigo. Ele sentado fitando um copo d’água, dizendo, rabugento, que ninguém merecia tal sentimento. Ele mesmo tão transparente quanto o líquido que bebia. Essa frase nunca mais me saiu da cabeça, e ao fim de 47 páginas lascivas, ela se torna ainda mais presente.
Lançado no dia 2 de maio, a obra apresenta uma autora com a juventude na pele, mas uma alma tão experiente quanto à de Hilda Hilst e tão “imaculada” quanto à de Bukowski. A obra que se divide em duas partes, possui uma cadência de marchinha de carnaval, falando de amores e da incompreensão de cada dia. A autora é jazz, é blues e folk, estilos que destilam a alma de quem sente demais e não pede desculpas por isso.
Coloquei uma canção triste
e repousei o copo na mesa.
Uma lágrima de café escorreu.
Foi como se me cortassem o peito.
Feito como se corta uma árvore para
extrair seu leite.
Todo aquele líquido desperdiçado
todo aquele conteúdo derramando-se para
o nada.
(…)
Eu nunca me identifiquei tanto com a
solidão das coisas.
(Trecho do poema ”Fragmento de Quinta”, pag. 14)
Na primeira parte, o que chama logo atenção em “À Meia-Luz” é o grito pelo outro, essa busca visceral em encontrar um porto. Mas o amor é um iceberg nas mãos dos poetas: por cima está a palavra “amor”, por baixo está tudo o que realmente se quer dizer: o gozo forte, a cama desarrumada pela manhã, o suor, a falta, a penetração de uma vida na outra. E o corpo é uma morada única para Denise. O corpo, aberto para poucos (ou muitos, dependendo da sua liberdade), é um espaço de experiências, e por que não experimentar? Os poemas “Inquilinos” e “Interim” são os facões que cortam o bucho desse tabu.
Outro grito também é identificado nesta obra, este socialmente feminista. Ser uma poetisa, acredito, é ainda mais desafiador. Até na poesia vemos um patriarcado – e não venha me dizer que você não enxerga. Enquanto que o homem é mais facilmente elevado ao sentido de mestre, mesmo que aos trancos e barrancos, a mulher enfrenta muito mais pedras no meio do caminho. Porque o homem sensível primeiro enfrenta o preconceito e, às vezes, é finalmente enxergado. “Olha o poeta ali, gente!” A mulher, hum, naturalmente já é taxada de sensível, então é preciso ir mais além. O horizonte feminino sempre é mais distante, o mergulho é sempre mais profundo e, muitas, sem serem enxergadas, abandonam suas poesias na correnteza das marés.
O mergulho era sempre duro
nadando no lodo da exatidão.
As suas incertezas boiavam
E o seu esqueleto quebrado afundava-a
Como âncoras em fins de tarde.
(trecho do poema “Marés”, pag. 19)
Ser uma poetisa, acredito, é ainda mais desafiador. Mas como boa nordestina, segurando a lamparina numa mão e a fé na outra, Denise Medeiros, assim como uma flor drummondiana, rompe o tédio, o nojo, o ódio e os estereótipos.
Na segunda parte de sua obra, a autora apresenta um eu-lírico arrebatado ainda mais pela paixão. O desejo carnal se apresenta muito mais forte, muito mais exigente, muito mais presente nas chamas. Há uma atmosfera fílmica nesta obra, uma roteirização sem idades aparentes, sem características corporais marcadas, mas uma sede sem fim do outro. Isso muito me lembrou o filme “Shame” (2011), de Stive McQueen, que debate toda essa falta e solidão.
Me deixe sem sentido
e sem palavras
te amando no inconsciente
e no indecifrável.
(trecho do poema “Absorta I”, pag. 31)
A introspecção é um ato tão trabalhado nesta obra que beira ao existencialismo francês, e quem sabe beirando num acaba caindo? E que caia, pois se adentrar em si mesmo é uma tarefa irremediável, o que tem de árduo tem de necessário.
As outras que não sou.
Os muitos que são eu.
Uma alma de gaveta.
(Trecho do poema “Cigarro de Insensatez”, pag. 40)
Carregado de referências diretas, “À Meia-Luz” é um mosaico de recitais, seja Vinícius de Morais e “O Soneto da Fidelidade”, seja Fagner e sua inesquecível “Revelação”, ou Fernando Pessoa que, acompanhado de seus heterônimos, se tornou mais lúcido do que todos ao nos dizer “O coração se pudesse pensar, pararia”. Ao fim da obra uma coisa fica clara: Denise mergulhou muito nos outros e em si própria. O que encontrou? Só ela pode contar, mas arrisco ao dizer que algo lindo surgiu daquele seu abismo particular que é pensar e sentir.
Poema “Aviso”, de Denise Medeiros
Estudante de jornalismo, com um tombo por cinema e literatura. Curte um festival de música assim como um bom gole de café. Enquanto não acha seu meu rumo, continua achando que é a pedra no meio do caminho.