Um dos mais importantes cineastas da história do cinema mundial, Federico Fellini nasceu em Rimini, na Itália, no dia 20 de janeiro de 1920, cidade essa que Fellini também usou como inspiração para filmes como “Os Boas Vidas” e “Amarcord”. Antes de buscar seus caminhos no cinema, o diretor italiano trabalhou em jornais para os quais realizava charges satirizando a política italiana da época. Além dessa função, tornou-se colaborador e desenhista de histórias em quadrinhos, escreveu sketches para rádios e monólogos para cômicos famosos.
Fellini buscou nessas suas experiências pré-cinema o mesmo que busca nos seus principais enredos para a criação de seus roteiros e, posteriormente, dos filmes. Em decorrência disso, Fellini se tornava um diretor de criatividade ilimitada que buscava transformar delírios, sonhos e frustações como um fator fílmico. Essa característica acabou virando adjetivo, conhecida também como felliniana.

[…] um pouco como num sonho: o que a gente vê e faz num sonho não é real, mas isso só se sabe depois, quando acordamos. Enquanto dura o sonho, pensamos que é verdade. Essa ilusão de verdade, que se chama impressão de realidade, foi provavelmente a base do grande sucesso do cinema. (BERNARDET, 2000, p. 12)
Mas foi no ano de 1944, quando surgia na Itália o movimento Neorrealista, que Fellini teve uma das principais experiências que levaria ele a se voltar para o mundo cinematográfico, quando juntamente com Roberto Rossellini desenvolvem o roteiro de filmes como “Roma, Cidade Aberta” e “Paisà”. Porém, sua consagração como diretor só veio com o filme “A Estrada”, pelo qual ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro, mas deve-se destacar que mesmo trabalhando com diretores neorrealistas, Fellini nunca fez um filme que fizesse parte desse movimento. Ele sempre ficou conhecido como um diretor autor.

Outro grande filme do diretor e que teve bastante repercussão é “8 ½”, de 1963. Com ele, Fellini ganhou o Oscar de melhor direção. Para muitos críticos, o longa era autobiográfico, no qual Fellini retratou a história de um cineasta em crise artística e pessoal. Na obra, acompanhamos a história Guido Anselmi (Marcello Mastroianni), um diretor que, recentemente, atingiu grande sucesso na indústria do cinema. Ele decide tirar umas férias, mas ninguém o permite descansar. Atores, atrizes, produtores, todos querem ouvir qual será a próxima grande obra do diretor. A pressão é tanta que ele decide inventar um rascunho, para tranquilizar os que o cercam. O problema é que a curiosidade geral vai aumentando, mas ele continua incapaz de criar uma história, a ponto de duvidar se o que ele tem é apenas um bloqueio, ou se a sua sorte – que ele pensava ser talento – acabou. Nesse período, somos apresentados à vida pessoal de Guido, sua esposa, seus amigos, suas amantes, em uma mistura de história e imaginação. Os devaneios e memórias do diretor vão invadindo o enredo central, de modo que não é mais possível saber o que é real ou não.

Para a construção do filme “8 ½”, Fellini se utiliza de um recurso bastante conhecido na literatura e na pintura, a metalinguagem, que nada mais é do que quando uma linguagem é usada para descrever ela própria, ou seja, um filme dentro do filme. Com isso, podemos perceber na narrativa do filme uma visualização do próprio processo de criação. Mas Fellini não analisa teórica ou ideologicamente esse processo. Ele está interessado em mostrar imagens do processo e as poderosas emoções de sua comunicação bem sucedida com a plateia. Como ele mesmo declarou: “eu não quero demonstrar nada; eu quero mostrar”. Tudo na vida profissional e afetiva de Guido mostra a atuação do irracional na criatividade artística. A edição do filme é feita de forma que não consigamos estabelecer um sentido de espaço e tempo. A câmera sempre mantém Guido dentro do quadro, enquanto os outros personagens movem-se livremente para dentro e para fora dele. Grande parte dos personagens possui os próprios nomes dos atores que os interpretam, o que explode novamente a linha entre ficção e realidade.
Logo de início podemos perceber um limiar entre a ficção e realidade. Inicialmente adentramos em um sonho de Guido, no qual o protagonista está dentro de um carro sendo sufocado, e todos observam passivamente sua morte. Fellini nos mostra sua genialidade na comunicação imagética cinematográfica onde vemos o personagem impotente com a situação, sozinho, e tudo como um espetáculo voltado para o público que apenas admira a sua morte. Nesta cena, Fellini estabeleceu um simbolismo entre o personagem Guido e o diretor Fellini, pois quando o diretor começou a filmar “8 ½”, ele já tinha uma carreira consolidada, sendo uma figura reconhecida na Itália e fora dela pelo seu trabalho de vanguarda, corroborado por prêmios importantes. Ao se tornar um nome conhecido no circuito cinematográfico, ele se tornara também um alvo da cobiça de produtores e dos magnatas do meio. Sobreveio então sobre ele as pressões multilaterais para se render ao cinema comercial, o que o levaria a uma das maiores crises criativas de sua carreira.

[…] o cinema destrói a imagem do duplo que cada instituição, cada indivíduo se tinha constituído diante da sociedade. A câmara revela o funcionamento real daquela, diz mais sobre cada um do que queria mostrar. Ela descobre o segredo, ela ilude os feiticeiros, tira as máscaras, mostra o inverso de uma sociedade, seus lapsus. É mais do que preciso para que, após à hora do desprezo venha a da desconfiança, a do temor […] A idéia de que um gesto poderia ser uma frase, esse olhar, um longo discurso é totalmente insuportável: significaria que a imagem, as imagens […] constituem a matéria de uma outra história que não a História, uma outra análise da sociedade. (FERRO, 1976, p. 202-203)
Podemos concluir que o personagem Guido Anselmi é uma espécie de alterego do diretor, uma vez que ele é um cineasta que também atravessa um angustiante período de antítese. Guido é a personificação do artista rebelde, detentor de ideias controversas e desconexas, que está prestes a ser domado pela indústria cultural.
O filme pode nos mostrar também de maneira mais clara o funcionamento dos bastidores do cinema, as pressões dos produtores, jornalistas e profissionais, que se amontoam como abutres, o que às vezes impedem um bom andamento de uma obra cinematográfica.
Fã de cinema desde de criança, estuda Arte e Mídia na Universidade Federal de Campina Grande (Paraíba). Tem como principais paixões a música, os quadrinhos e o cinema.