A necessidade que temos de contar uma história sempre está presente, é um ímpeto que acende o peito de todo escritor, mostrando-lhe essa grande urgência em se contar tal fato, noticiar o que acha que seja de interesse público ou particularmente dele. Esse acode se mostra também presente na vida de outro profissional, que tal como o escritor, nasce com essa urgência de vida na palavra. O jornalista, assim como o escritor literário, surge da mesma simbiose entre a ação de viver e o ato de relatar suas vivências ou as dos outros.
Dentre os últimos livros que li no mês, Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas, de José Saramago, é um em especial que chamou minha atenção, tamanha sua discussão e atualidade. Ao falecer, em junho de 2010, Saramago havia deixado um último trabalho ainda inconcluso. Único livro póstumo do escritor português, lançado em outubro no Brasil pela Companhia das Letras, a obra é uma lembrança do processo de criação e indagação do mesmo aos problemas sociais, seu tema favorito e mais desenvolvido em suas obras.
Nos últimos anos, o gigantesco aumento no armamento militar das polícias, as facilidades em se comprar uma arma nos EUA e as temidas guerras de fronteiras/ideológicas no mundo vêm tomando espaço nos noticiários mundiais devido a um fator comum que você já deve ter percebido qual: armas. Alabardas é um discurso político contra o punho violento da indústria armamentista mundial, escondendo a violência e batalhas de poder sob a ambiguidade de possuir uma arma para manter a segurança.
A obra
O livro conta a história de Artur Paz Semedo, um homem comum que trabalha na fábrica de armas Produções Belona S.A. Paz Semedo é um funcionário que nunca questionou as ordens dos patrões e sempre se sentiu indiferente sob a finalidade do que produzia, mas na verdade ele até se orgulhava do que ajudava a construir, almejando o cargo na direção de armas pesadas. Muito diferente de Semedo, sua mulher, Felícia, tinha um ímpeto de pacifista, que por não acreditar nas ideias e ambições do marido resolve abandoná-lo.
A narrativa de Saramago se desenvolve a partir deste conflito entre o sentimento que ambos nutriam, mas que suas ideologias divergentes contribuíram para a desconstrução. Isso é típico do autor, que sempre busca a quebra de relações, seja a social (em Ensaio Sobre a Cegueira), seja a religiosa (em Evangelho Segundo Jesus Cristo) ou talvez a econômica (em As Intermitências da Morte). Muitas são as relações, muitas também são suas fragilidades. E por sermos tão frágeis e não nos percebermos assim, é que o autor apresenta de maneira visceral nossas piores verdades, de sujeitos vivendo em sociedades, porém cada vez mais sozinhos.
A análise crítica do escritor já começa pelo título da obra, Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas – um trecho retirado da obra Exortação da Guerra, de Gil Vicente –, além de trazendo referência de ambiguidade no próprio sobrenome do personagem, “Paz”, que segundo dicionários, é um estado que se caracteriza pela harmonia de elementos, um estado que não se concretiza aos resultados do trabalho que o personagem exerce na fábrica Belona. A palavra “Belona” é originária da mitologia romana, representando o nome da deusa da guerra.
A obra também abre espaço para a discussão quanto aos problemas sociais, seja diante da subversão de Paz Semedo sob os ideais dos seus patrões ou quanto a finalidade que os armamentos fabricados na Belona S.A. resultarão. São dois aspectos muito importantes que valem o destaque e toda atenção, derivando no clima entre o personagem principal e sua affair, Felícia.
Apesar de o livro ter somente 57 páginas escritas por Saramago, a obra lançada pela Companhia resulta num aglomerado de anotações do próprio autor sobre as suas primeiras ideias para o novo projeto, além de três críticas sobre a obra desenvolvidas por três escritores da lista da própria editora, cada um apresentado suas perspectivas, referências históricas e sociais, e questionamentos sobre qual seria o final que Saramago escreveria sobre esse casal de amores perfurados pelas balas do destino.
Estudante de jornalismo, com um tombo por cinema e literatura. Curte um festival de música assim como um bom gole de café. Enquanto não acha seu meu rumo, continua achando que é a pedra no meio do caminho.