Em determinado momento, Augusto Mendes (Vladimir Brichta) fala para o produtor norte-americano – e criador da marca Bingo – a famosa frase “O Brasil não é para iniciantes.”. A postura do apresentador era uma tentativa de quebrar a frieza do roteiro gringo que, claramente, não funcionaria com as crianças tupiniquins. Peter Olsen (Soren Hellerup) não sabia que entregara seu legado nas mãos de um homem desequilibrado, imoral, depravado e inconsequente, reiterando o argumento de Augusto. O Brasil da década de 1980 era mesmo um lugar impressionante…
Bingo – O Rei das Manhãs toma emprestado a vida de Arlindo Barreto para contar a saga de um ator que alcançou sucesso na carreira, à frente de um programa infantil, na pele de um palhaço cuja identidade não poderia ser revelada.
Escrito por Luiz Bolognesi, o roteiro não faz questão de fugir das convenções de gênero, mas as aborda com tanta propriedade que jamais ofende pela falta de originalidade. Apesar de ser inspirada no primeiro Bozo brasileiro, a história modifica elementos para ter a liberdade criativa de romancear o que achar pertinente. Ainda assim, mantém a tradicional estrutura de obras biográficas, cobrindo o anonimato, a ascensão, o declínio e a volta por cima de seu protagonista.
Os elementos narrativos são tão bem conduzidos que até alguns acontecimentos previsíveis soam coerentes e necessários. Por exemplo, quando Bingo passa a atender crianças ao telefone no programa, a sua vida pessoal permite deduzir que, em algum momento, uma determinada ligação será realizada. Mesmo assim, ao vermos que a suspeita se concretiza, somos capazes de nos comover. Méritos de Bolognesi que constrói seus personagens com profundidade e empatia. Nesse sentido, a utilização dos clichês é bem vista porque o roteiro independe deles para funcionar. As diversas camadas apresentadas aqui tiram qualquer unidimensionalidade da trama. Estruturalmente, o filme transita entre o humor e o drama com louvável precisão, sabendo a hora exata de inserir piadas e momentos de comoção.
Já no campo dos personagens, vemos conflitos genuínos. Augusto é um pai carinhoso, mas inconsequente ao ponto de levar o filho aos estúdios das pornochanchadas que atua. Querendo um emprego que o aproxime mais do pequeno, ele consegue a vaga para interpretar o palhaço. Porém, a realização de sua motivação pessoal esbarra na cláusula contratual de anonimato, o que acaba ferindo também sua vaidade. Assim, ele se afasta da família e se entrega à vida desregrada de bebidas, drogas e sexo. Duas belas cenas são frutos dessa complexidade, a do anseio pelo reconhecimento, diante da plateia, e a do aprisionamento sob a pintura.
Vladimir Brichta encontra-se surpreendente. Atingindo sua maturidade profissional, foge dos habituais maneirismos e compõe uma personalidade complexa com muita qualidade. Transita brilhantemente por todas as etapas da trama sem perder a segurança. Mostra competência dramática e dá sustentação às cenas mais intimistas. Além disso, quando se veste de Bingo, o ator confere paixão e veracidade.
Leandra Leal tem a difícil missão de mesclar os confusos sentimentos de Lúcia. A atriz mostra talento ao confrontar a imagem sisuda e fria da evangélica diretora e o olhar seduzido pelo controverso Augusto. Merecem destaque a cômica participação de Augusto Madeira como Vasconcelos, o cativante Cauã Martins como o adorável Gabriel e Emanuelle Araújo como Gretchen.
Envolvido em projetos como Cidade de Deus (2002), Tropa de Elite (2007 e 2010) e A Árvore da Vida (2011), de Terrence Malick, o editor Daniel Rezende assume a cadeira de diretor pela primeira vez e demonstra conhecimento. Ao lado de Lula Carvalho, responsável pela fotografia, Daniel trás dinamismo e agilidade, como também ambos realizam ótimos movimentos de câmera. Destaque para o plano-sequência que se inicia num apartamento, passeia pelo céu de São Paulo e finaliza num quarto de hospital, e para a belíssima câmera “tombada” que enquadra lateralmente um corredor escurecendo aos poucos. Movimentos que oferecem mais que beleza estética.
É preciso reconhecer a direção de arte de Cássio Amarante e a música de Beto Villares. Ambos são primordiais na recriação da década de 1980, através dos figurinos, cenários, efeitos especiais que jogam a capital paulista no passado e do resgate nostálgico das músicas que carimbam a época da trama.
Mesmo não sendo nem um pouco original, Bingo – O Rei das Manhãs carrega excelência em todos os seus elementos. Traz uma história impactante, nos faz torcer pelos personagens, tem uma cinematografia apurada e manipula nossas emoções com talento. Além disso, nos faz viajar ao passado e aflorar a nostalgia de uma época que, controversa, refletia com mais precisão nossa identidade coletiva. Um grande filme!
Radialista por formação e jornalista em formação. Minha paixão pelo cinema me trouxe ao Chaplin; minha loucura, ao Movietrolla. Qualquer coisa, a culpa é d’O Chaplin… E “A Origem” é o maior filme de todos!