Carmen é uma personagem de caráter transgressor para a época em que foi criada. Trair, contrabandear, roubar e se prostituir eram ações comumente a ela designadas. Miguel de Cervantes foi um escritor com um fim de vida difícil, imposto por uma vida dura nas batalhas de seu reino. Seu nome tornou-se sinônimo de boa literatura, no entanto, muito tempo após sua morte. O encontro dessas duas figuras importantes da literatura mundial, mas em duas dimensões diferentes, é a proposta da peça carioca Carmem, de Cervantes, que está em turnê pelo Nordeste. Em Natal, o espetáculo foi encenado na Casa da Ribeira em duas sessões diárias nos dias 3 e 4 de maio.
O espetáculo é baseado do conto homônimo de Marcos Arzua, que também trabalhou na adaptação do livro para os palcos. Carmen deseja um novo destino, em que sua sensualidade cigana, típica da Andaluzia (região ao sul da Espanha) e vontade de amar livremente não sejam sinônimas de malícia inconsequente. Para isso, invoca Miguel de Cervantes (1547-1616), um dos mais célebres escritores castelhanos de todos os tempos, autor de Dom Quixote, para reinventá-la em condições mais libertárias. Livres no tempo e no espaço, as histórias de ambos se cruzam, modificando trajetórias e recriando desejos.
O texto é bastante preciso, provocando quase que imediatamente reflexões sobre identidade, propriedade, preconceito e reinvenção. Esses temas são abordados, principalmente, nos momentos em que Carmen questiona algumas características da sua relação amorosa com o militar José (Ricardo Santos). Nesses momentos, a atriz Ana Paula Bouzas entrega uma atuação bastante efervescente de Carmen e, por isso, excelente. Os demais atores estão bem em cena, mas vale salientar um aspecto importante na caracterização de Cervantes que foi deixado de lado: em algumas cenas, o ator Samir Murad utiliza normalmente sua mão esquerda, o que não condiz com a história do autor espanhol que interpreta, cujo membro esquerdo ficou inutilizado após ter sido ferido em uma batalha. Inclusive, o apelido de Manco de Lepanto lhe foi dado devido a esse acontecimento.
O figurino determina com exatidão as características pessoais e profissionais de cada personagem e o cenário – composto por várias jutas (um tipo de tecido) penduradas e algumas cadeiras – é bastante minimalista. Na primeira cena, a sombra de Carmen dançando por trás de um desses tecidos enquanto Cervantes devaneia dá um belo efeito à primeira cena do espetáculo. Tal cena também é um primor para os ouvidos dos espectadores: é aí que somos apresentados ao acordes do violão de Luiz Brasil, responsável pela música original do espetáculo. O produtor musical é conhecido por suas trilhas sonoras para icônicos filmes do cinema nacional, como O Quatrilho, Central do Brasil e Ó paí, ó.
Em 70 minutos, Carmen, de Cervantes demonstra em linguagem artística o nosso desejo de reconstruir nossas próprias histórias, de abandonar o conformismo e de não aceitar as convenções sociais. Por isso, esse encontro de titãs da literatura proposto por Arzua é, também, uma ótima viagem para o nosso interior.
Sagitariano carioca que mora em Natal. Jornalista formado pela UFRJ e UFRN. Apaixonado por cinema, praia e viagens.