Se um dia Sandra Bullock já ganhou o Framboesa de Ouro, após “Imperdoável” (Netflix, 2021), já não me recordo.
A verdade é que tal como “Blue Jasmine” (Woody Allen, 2013) é um filme de Cate Blanchett, “Imperdoável”, drama lançado no último mês pela Netflix e dirigido pela alemã Nora Fingscheidt, é um filme de Sandra Bullock, atriz que, infelizmente, ficou mais conhecida nas últimas décadas pelo grande público por besteiróis e comédias românticas (o que ela faz, de fato, muito bem, convém dizer) que por atuações impactantes como as que entregou, por exemplo, em Crash – No Limite (2004), Gravidade (2013), e Bird Box (2018), este último também produzido pela Netflix e que lhe rendeu o inaceitável título de “Netflix lady” (ou “moça da Netflix”, em bom português), uma vez que retornou aos por vezes lacônitos holofotes aos quais têm acesso as novas gerações.
Voltando a “Imperdoável”, sintetizemos a trama para os que chegaram aqui desavisados:
Após cumprir pena por um crime violento, sobre o qual não temos informações detalhadas durante boa parte da película, Ruth (Sandra Bullock) volta ao convívio na sociedade, que se recusa a perdoar seu passado em meios às tentativas de retomar interações sociais e laborais. Discriminada, sua única esperança é encontrar a irmã, que ela havia sido forçada a deixar para trás em ocasião do crime em questão, quando a irmã, Kate (Aisling Franciosi), tinha apenas 5 anos.
O drama do filme dá-se não necessariamente em torno do crime cometido, mas parte em torno do julgamento social que ronda Ruth e parte movido pela tentativa de Ruth de voltar a ter notícias sobre sua irmã, que é sua única parente próxima viva e que, após o episódio fatídico do crime, foi adotada por uma família que faz questão de manter Ruth e a memória da vida que tiveram antes da adoção distantes de Kate.
Ainda sobre o tópico Sandra Bullock, faz-se necessário debulhá-lo um pouco mais: é possível sentir, na atuação de Bullock, não apenas o trabalho maestral de uma atriz experiente, mas o esforço, a sensibilidade e a parceria de direção, sem a qual, seguramente, a atriz não teria alcançado o mesmo desempenho. E quando falo de “desempenho”, não falo de uma boa atuação, mas de um trabalho que pode vir a entrar para o ranking dos melhores de sua carreira. Trata-se de uma atuação em que é possível sentir a intensidade e a densidade mesmo na inexpressividade proposital de cada olhar, onde o não dito e as microexpressões são capazes de gritar muito mais que textos de minutos.
Inclusive, Ruth é uma personagem silenciosa. Ela pouco fala, mas não faz-se necessário palavras para compreendermos os sentimentos que a envolvem. Eles estão tão claros que nos doem. O expectador é capaz de sentir sua dor, sua luta e seu luto. E é capaz de compreendê-la, antes mesmo de ter os elementos necessários para entendê-la. Apenas uma atriz com o gabarito e a experiência de Sandra Bullock é capaz de entregar tamanha interação com tão poucos recursos.
Mas nem só de Sandra Bullock faz-se “Imperdoável”. A sempre impecável Viola Davis interpreta Liz Ingram, a atual moradora da sua antiga casa que, após expulsar Ruth de seu convívio, movida pelo senso de proteção a sua família, acaba tornando-se uma aliada no ato final. A relação delas é movida pelo sentimento de empatia. Liz personifica a emoção do público com relação a Ruth. O julgamento dá espaço à compreensão silenciosa e a compaixão de uma situação que, ainda que inexplicada, cheira a injustiça. Viola Davis tem força, presença e impacto e as cenas em que ela e Sandra Bullock aparecem juntas são verdadeiras aulas de interação diante das câmeras. Uma explosão de talento de prender a respiração.
Por fim, os méritos de “Imperdoável” não estão somente no elenco, embora essa seja uma impressão que possa ser transmitida de imediato. Há um roteiro carregado de sutilezas, críticas sociais, emoções e surpresas que arrebatam definitivamente o expectador que se permita envolver. No entanto, é preciso informar, este não é um filme para os que buscam mero entretenimento. “Imperdoável” é lento, um tanto cinza, dramático e pesado. Mas aqueles que estiverem dispostos a cultivar a energia que o filme demanda pelas quase 2h de duração da película certamente não terão arrependimentos.
Jornalista, cinéfila incurável e escritora em formação. Típica escorpiana. Cearense natural e potiguar adotada. Apaixonada por cinema, literatura, música, arte e pessoas. Especialista em Cinema e mestranda em Estudos da Mídia (PPgEM/UFRN). É diretora deste site.