Para muitas pessoas, a arte sacra está relacionada à imponência das igrejas góticas europeias, ou à riqueza de detalhes do barroco, facilmente visualizada nos templos mais antigos de Salvador, do Recife e das cidades históricas de Minas Gerais. Aleijadinho, como é popularmente conhecido o escultor Antônio Francisco Lisboa, é um dos maiores expoentes do barroco/rococó brasileiro, por exemplo. São poucos os cruzamentos da religião com as escolas artísticas mais modernas e, no Brasil, eles estão mais concentrados na arquitetura das igrejas, como catedrais metropolitanas em Natal, de 1988, e no Rio de Janeiro, de 1976.
Um dos poucos representantes da arte sacra moderna nas artes plásticas é o pintor Mário Mendonça, que se identifica com o expressionismo na pintura de paisagens e com o trabalho de dois pintores, em se tratando de arte sacra: Matthias Grunewalld, pintor gótico revalorizado pelos expressionistas pelo uso singular de expressão através de linhas e cores, e El Greco – precursor do expressionismo e do cubismo ainda nos séculos XVI e XVII. “O estilo contemporâneo depende muito da cultura das pessoas. Nós temos pintores sacros contemporâneos extraordinários, como [o francês Georges] Rouault por exemplo. Eu me sinto fazendo aquilo que tenho que fazer, porque antes de ser um pintor sacro eu sou principalmente um pintor cristão”, afirma o artista.
Mário Mendonça nasceu no Rio de Janeiro, em 1934. Em 2014, o artista está completando 80 anos, sendo 50 deles dedicados às artes plásticas. Antes de dar as primeiras pinceladas profissionais, ele exerceu a advocacia por alguns anos. Vale destacar o uso da expressão “profissional” porque Mário foi autodidata, tendo apenas aperfeiçoado sua arte por meio de cursos de pintura com Ivan Serpa, um dos maiores nomes da arte não-figurativa do país, e com Aloísio Carvão, figura importante do concretismo e do neoconcretismo brasileiro. Todas essas mentes criativas conviviam na nova sede do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, palco de importantes movimentos de vanguarda da arte nacional nos anos 50 e 60, como a exposição do Grupo Frente, em 1956, considerada um marco do construtivismo nas artes plásticas.
A arte de Mário Mendonça, nos anos seguintes, continuou rompendo barreiras. Mesmo estando ligadas à religião, o artista executou algumas peças que conflitavam com a ideologia da Ditadura Militar, que quase foram impedidas de serem expostas ao público no Museu de Belas Artes, em 1972. “Fui chamado para prestar esclarecimentos sobre uma tela minha no SNI (Serviço Nacional de Informação) e ainda em outra ocasião respondi a uma entrevista que durou toda uma tarde, a um grupo de ‘jornalistas’, entrevista que nunca foi publicada. Na verdade, eu estava sendo sondado”, revela Mário Mendonça.
Depois desse episódio, o pintor carioca realizou diversas exposições individuais, no Brasil e no exterior, com independência, e nunca mais foi incomodado por governos autoritários. A prova do reconhecimento de seus trabalhos chegou por meio da seleção de suas obras para compor importantes acervos, como os do Museu de Belas Artes (Brasil), Museu Ludmila Jiukava (Bulgária), Ibero Amerikanisches Institut (Alemanha) e até do Museu do Vaticano. Na sua cidade natal, Mário Mendonça produziu vias sacras de várias igrejas, entre as quais se destacam a Matriz da Ressurreição e a Matriz de Nossa Senhora de Copacabana, no bairro homônimo, a Matriz de Santa Mônica, no Leblon, e a Matriz de Santo Agostinho, na Barra da Tijuca.
E é na Barra da Tijuca, bairro moderno e projetado por Lucio Costa, que Mário Mendonça deu o primeiro passo em busca de um sonho antigo: o espaço Mário Mendonça, inaugurado em 2003, um lugar onde toda sua arte pudesse ser dividida com as pessoas. Inquieto e democrático, ele queria um espaço não só para ele, mas um local onde os visitantes pudessem apreciar obras de vários pintores. Nessa perspectiva, em 2012, foi inaugurado o Instituto Mário Mendonça, onde há uma exibição permanente – e gratuita, vale destacar – de mais de duas mil peças, constituída por obras do pintor carioca e também por quadros de Portinari, Guignard, Di Cavalanti, dentre outros, formando um panorama da arte brasileira contemporânea na historicamente consagrada Tiradentes, em Minas Gerais. “Eu não escolhi Tiradentes, mas Tiradentes me escolheu. Lá eu encontrei tudo que gosto: misticismo, beleza da paisagem, clima, enfim, lá eu me encontro”, confessa o pintor. Nessa mesma cidade, Mendonça deixou outra contribuição: a via sacra da Capela de Bom Jesus da Pobreza, a única igreja tombada do barroco brasileiro ornada com representação contemporânea do martírio de Cristo.
Essa dualidade entre o antigo e o contemporâneo – que esteve sempre presente na sua vida – não poderia deixar de se manifestar recentemente, quando Mário Mendonça recebeu a notícia de que sua interpretação para a Ressurreição seria exposta no Santuário do Cristo Redentor, um dos símbolos do Cristianismo mais conhecidos do mundo. A confirmação chegou em 22 de fevereiro desse ano, um dia especial para a Igreja Católica: Dom Orani Tempesta, arcebispo do Rio de Janeiro, foi nomeado cardeal. “Iniciei as conversações com a Arquidiocese do Rio de Janeiro em 2008 e foi uma feliz coincidência o desfecho ter sido num dia tão especial. Sou muito grato ao apoio dele”, comentou.
Para entender como o confronto entre o antigo e o contemporâneo se manifestou na sua mais recente obra, basta enxergá-la atenciosamente. “Eu poderia ter seguido o estilo que desenvolvo que é moderno, expressionista, com pinceladas soltas, mas eu pensei que não estava pintando o Cristo do Corcovado para mim, então me esmerei para torná-lo acessível para que público em geral o adote, o entenda. Ao invés de um desenho moderno, parti para uma execução clássica, contudo fugindo desse classicismo na cor, através dos excessos dos amarelos que compõem a tela”, explica. A tela está no local desde o domingo de Páscoa (20/4), sem previsão de deixar o local.
Antes de chegar ao monumento mais famoso do Brasil, o quadro passou por seis igrejas de diferentes áreas do Rio de Janeiro desde janeiro. Nele, o artista apresenta a Santíssima Trindade. No alto, à direita de Cristo, está a mão de Deus o abençoando e, em sua mão esquerda, pousa a pomba, símbolo do Espírito Santo, todos com os ferimentos da Paixão. Segundo Mário, como são um só, todos foram feridos e sofrem. Pela primeira vez a Ressurreição foi pintada dessa maneira. Aos pés da imagem de Cristo está o manto do Sudário com a imagem dele gravada e a frase: “Jesus ressuscitou para que todos tivessem vida plena, inclusive os que ainda se encontram no ventre materno”. Para representar seu ponto de vista da Ressurreição com traços clássicos, Mário conta que precisou fazer duas viagens à Itália para estudar as obras dos mestres Fra Angelico, Michelangelo, Da Vinci e Botticelli, assim como também precisou rever o Sudário de Turim. “Fiquei feliz com o resultado”, avalia o pintor.
Sagitariano carioca que mora em Natal. Jornalista formado pela UFRJ e UFRN. Apaixonado por cinema, praia e viagens.