O Doutrinador: referências corretas em meio a escolhas erradas

O cinema brasileiro deu um passo corajoso ao se arriscar no universo dos filmes de herói. Entretanto, ousadia e referências corretas não são garantias de acerto. Ancorada numa ideia pertinente, e claramente bebendo das fontes certas, a adaptação da HQ brasileira criada por Luciano Cunha chega às telonas com um gostinho de potencial desperdiçado.

Situado na fictícia Santa Cruz, O Doutrinador (2018) acompanha Miguel Montessant (Kiko Pissolato), um agente federal da Divisão Armada Especial (DAE). Após ver sua filha ser baleada e morrer no corredor de um hospital público por falta de estrutura e médico, canaliza seu ódio para se vingar dos políticos que ele considera responsável pelo ocorrido.

Miguel é um homem amargurado pela dor da perda. Fisicamente muito bem preparado e perito em armas, está sedento por vingança. Embora tenha uma enorme proximidade conceitual com Frank Castle, o Justiceiro da Marvel, o agente da DAE não surge como um plágio, mas como uma referência convincente, coerente com a situação política do Brasil. Afinal, como o próprio diz em determinado momento, ele não perdeu sua filha para a bala que a atinge, mas para o sistema corrompido que fere o país em setores como segurança e saúde.

O tempo disposto em tela para construir a motivação do protagonista é suficiente e bem utilizado. Porém, o roteiro parece ter pressa para entregar logo o Doutrinador, o que acarreta numa formação atropelada do ícone. Da sua perda até a primeira aparição como o vingador, as coisas se organizam com facilidade. A própria máscara, por exemplo, chega até ele de forma quase aleatória durante um protesto.

A grande quantidade de roteiristas envolvidos no projeto interferiu no resultado final, que apresenta problemas de coesão e falhas na estrutura narrativa. Falta continuidade à história, que é contada de forma episódica. Parece muito mais uma compilação de capítulos do que um filme.

As personagens são mal desenvolvidas. Miguel já tem toda uma preparação, o que nos impede de ver sua construção – diferente de Batman Begins (2005) ou Homem de Ferro (2008) – e causando estranheza quando, por exemplo, o vemos praticar movimentos de Parkour. Sua personalidade se limita às figuras de pai amoroso e de vítima cheia de ódio. Já Nina se mostra uma hacker padrão – visual particular, falastrona e inteligente. Ela acaba subutilizada, sendo necessária em apenas uma cena.

De resto, muita unidimensionalidade. Edu é outro agente da DAE, apresentado apenas como honesto; Isabela é a ex-esposa e não oferece nada além disso; e o vilão Antero Gomes não passa de ganancioso e inescrupuloso.

Apesar da corrupção ser um ótimo ponto de partida, dando à plateia uma problemática coerente e um eficiente identificador, O Doutrinador evita reflexões e discussões mais profundas, optando pelo caminho mais fácil de que todo o sistema é corrompido.

Essa escolha atinge também os vilões, criaturas completamente caricatas e unidimensionais – eles roubam porque são políticos. Algumas cenas são constrangedoras, como as reuniões regadas a comida cara, planos infalíveis e gargalhadas espalhafatosas – em determinado momento, a TV mostra um coro de “O Brasil é nosso”, vindo de representantes durante sessão no Senado.

Outra abstenção do roteiro é referente ao dilema moral do anti-herói. Miguel usa da dor pessoal para “consertar” o país à base da violência e, em momento algum, o vemos questionar os próprios atos. Não existe um conflito aqui.

Tão pouco somos apresentados à reação da sociedade, apesar de vermos a repercussão da mídia. Nunca sabemos se a população é a favor ou contra O Doutrinador, como se o filme fizesse questão de dizer: “contamos essa história, mas não concordamos com ela”. Existem os que se opõem ao mascarado, como o DAE, mas é preciso o contraponto para equilibrar a balança e gerar discussão. Caso contrário, ele não passa de um assassino vingativo.

A direção de Gustavo Bonafé e Fábio Mendonça é esforçada e tem bons pontos. Apesar de jamais ser enérgico ou instigante, o filme tem um ritmo bacana; as cenas de ação são bem coordenadas, mesmo que as coreografias nas cenas de luta sejam executadas numa velocidade abaixo da desejada; em alguns momentos, a produção se atrapalha na mise-en-scène e gera alguns cortes afobados, mas utiliza bem a câmera de mão e não cria uma montagem picotada demais.

Com o auxílio do diretor de fotografia Rodrigo Carvalho, Bonafé e Mendonça entregam boas tomadas da cidade e utilizam cores neon que estilizam o visual. As tomadas aéreas com o vingador no topo de prédios também são bem bacanas, embora não façam qualquer sentido narrativo – Batman e Homem-Aranha, por exemplo, surgem no alto de prédios para monitorarem as ações dos criminosos, já Miguel não precisa desse recurso, ele sabe quem são suas vítimas. Portanto, pra que mesmo ele sobe nos prédios?

Kiko Pissolato se mostra boa escolha para protagonizar a produção. Mesmo pecando nos momentos mais dramáticos, ele apresenta uma ótima fisicalidade e é convincente como um homem cheio de pesar; Tainá Medina quase não tem o que fazer como Nina, mas apresenta carisma e funciona ao lado de Pissolato. O resto do elenco ou não tem tempo o suficiente de tela – como Marília Gabriela – ou não tem bom material para trabalhar – como Carlos Betão e seu Antero Gomes.

Entre acertos legais e falhas muito relevantes, O Doutrinador conta com potencial de sobra, mas esbarra na falta de experiência. Representa algo diferente em nossa cinematografia, tem boas propostas e é original de um país que não deixa de oferecer pautas interessantes para capítulos futuros. Que venham novas aventuras e que abram caminho para outras obras similares.

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João Victor Wanderley
Radialista por formação e jornalista em formação. Minha paixão pelo cinema me trouxe ao Chaplin; minha loucura, ao Movietrolla. Qualquer coisa, a culpa é d’O Chaplin… E “A Origem” é o maior filme de todos!
João Victor Wanderley

João Victor Wanderley

Radialista por formação e jornalista em formação. Minha paixão pelo cinema me trouxe ao Chaplin; minha loucura, ao Movietrolla. Qualquer coisa, a culpa é d'O Chaplin... E "A Origem" é o maior filme de todos!

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