O Jardineiro Fiel: mortes soterradas

O Jardineiro Fiel, lançado em 2005 e dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles, tem como foco uma temática pouco explorada pelas grandes mídias e muito polêmica, que é a indústria farmacêutica e seus testes. Justin, interpretado pelo competente Ralph Fiennes, é um renomado diplomata que passou a exercer sua profissão na África. A bela Rachel Weisz dá vida à Tessa, uma destemida e enérgica ativista humanitária que desafiadoramente questiona Justin em uma de suas conferências, constrangendo a todos os presentes, menos ao conferencista, que se encanta pela moça, dando início a uma inesperada história de amor. Por causa do trabalho dos dois, ambos decidem se mudar para a África, que é o palco principal dessa história.

Ao lado do amigo e médico Arnold Bluhm (Hubert Koundé), Tessa continua ativamente envolvida em causas humanitárias, principalmente por estar na África, um lugar mundialmente conhecido por sua pobreza. Ela se interessa pela presença de indústrias farmacêuticas no Quênia ao perceber que muitos nativos morriam logo após usarem alguns medicamentos, porém, a causa da morte não era revelada, o que a faz pensar que essas empresas estão usando habitantes do Quênia como cobaias para seus testes sem que eles saibam disso. Quando morrem por causa dos medicamentos, os quenianos não só deixam de existir para seus parentes e amigos, como têm todos os seus registros apagados por essas indústrias, dando a impressão de que, documentalmente, eles nunca existiram. Vendo esses crimes serem cometidos impunemente, Tessa prepara um dossiê que expõe esses atos repugnantes e pretende mostrá-lo a Organização das Nações Unidas, mas não consegue, pois é assassinada antes disso.

Justin, seu esposo, soube da morte da sua mulher quando estava em uma viagem a trabalho, mas não satisfeito com as explicações fornecidas pelo consulado, e já familiarizado com os mistérios que cercavam a esposa, decidiu investigar seu assassinato por conta própria, o que nos leva a uma série de resultados surpreendentes e emocionantes.

Recheado de conflitos éticos, como testes de medicamentos em pessoas que estão em lugares miseráveis e que, aos olhos da empresa, não farão falta no mundo, mas também traições de amigos e amantes, a omissão de várias autoridades cientes do que está acontecendo e mentiras sem fim, faz de “O Jardineiro Fiel” um filme revoltante. Conciliando momentos íntimos do casal protagonista com problemas inimagináveis, mas cruelmente reais, o longa nos faz pensar até onde o bem comum está limitado pelos nossos interesses pessoais e nosso senso de ética, nos mostrando contrastes gritantes, como Tessa defendendo seus ideais até a morte, tendo seu projeito levado adiante pelo seu esposo, mas também empresas causando extermínio em massa em prol da comercialização de seu produto. Há uma exposição muito forte desses dois lados, nos levando a pensar em nossos próprios ideais e quais as consequências deles no mundo e nas outras pessoas.

Tecnicamente falando, esse não é o melhor trabalho de Meirelles, o que é justificável, pois o ponto forte do filme é a sua história. Não podemos deixar de dar destaque, porém, à fotografia e produção do filme, que mostrou de forma direta e clara os contrastes que haviam entre a qualidade de vida de um diplomata e de um habitante da África, com câmeras que se movimentavam vagarosamente, dando um toque de documentário ao longa. O diretor ainda misturou a estonteante beleza natural da África com a sua pobreza, além de fazer uso da narrativa não-linear, quando recorta cenas do meio e fim do filme e as coloca no começo dele, o que contribuiu muito para trazer uma melancolia que se tornou onipresente em todas as cenas, entregando um belo resultado.

As atuações dos atores principais também são dignas de atenção. Ralph Fiennes não precisa se desmanchar em expressões faciais e gestos para que toda a dor e revolta de seu personagem seja sentida pelo telespectador. Há algo nos olhos desse homem, que apesar de serem claros, mostra sempre a existência de uma penumbra em seu coração. Ele leva seu trabalho a sério e nos comove, mostrando um personagem sensível, apaixonado, quieto e sério, que vê seu mundo desabar. Rachel Weisz, por sua vez, nos encanta toda vez que mostra seu sorriso surreal, dando beleza, força e sensualidade à Tessa, não nos deixando pensar que é só uma mulher obcecada por um assunto, mas sim uma pessoa realmente comprometida com a vida de outras pessoas.

“O Jardineiro Fiel” impressiona não só por ter uma história muito complexa sendo contada de forma clara, emocionando quem o assiste, mas também por dar voz a uma questão social que não é levada a sério pelas autoridades e grandes mídias, pois o que acontece no filme pode ser o reflexo de um dos problemas de vários países de terceiro mundo, mas que dificilmente serão relatados. Vale a pena assisti-lo.

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Clara Monteiro
Estudante de Enfermagem que se mete em letras, músicas e desenhos. Segue a filosofia de que a vida é muito curta para gastá-la com preocupações. Dificilmente algo conseguirá surpreendê-la. Lê tudo, assiste tudo, vê o lado bom de tudo. É editora deste site.
Clara Monteiro

Clara Monteiro

Estudante de Enfermagem que se mete em letras, músicas e desenhos. Segue a filosofia de que a vida é muito curta para gastá-la com preocupações. Dificilmente algo conseguirá surpreendê-la. Lê tudo, assiste tudo, vê o lado bom de tudo. É editora deste site.

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