2013 foi um ano muito safadinho para o cinema francês. As principais produções do país europeu que chegaram ao Brasil tinham alguma referência ao sexo: desde polêmicas cenas de transa entre duas mulheres (como é o caso de “Azul é a Cor Mais Quente”) até quando o sexo, e sua comercialização, se tornam o principal tema a ser desenvolvido (é o caso de “Jovem e Bela”). Estava faltando um filme que mostrasse a volúpia entre dois homens, mas a lacuna começa a ser preenchida pelo longa “Um Estranho no Lago” (L’inconnu du Lac), dirigido pelo diretor Alain Guiraudie, que estreou nas salas das principais capitais do país em dezembro.
![Direção soube aproveitar os efeitos de sombra para aumentar o clima de suspense na obra](https://revistapagu.com.br/wp-content/uploads/2014/01/l-inconnu-du-lac-alain-guiraudie-1600x1066-1024x682.jpg)
Um lago calmo e isolado é o cenário de uma colônia homossexual, utilizada como praia de nudismo. Ao lado, há um bosque onde os frequentadores transam sem nenhum pudor e sem nenhum medo de serem flagrados. É nessa paisagem em que Franck (Pierre Delandonchamps) inicia uma amizade com Henri (Patrick d’Assumção), um homem gordo recém-separado da esposa que busca a tranquilidade oferecida pelo local, sem demonstrar interesse sexual em nenhum homem. O longa se arrasta até o ponto em que o belo Michel (Christophe Paou) começa a frequentar o lago.
![O misterioso Michel (esquerda) começa a frequentar o lago e desperta o interesse de Franck](https://revistapagu.com.br/wp-content/uploads/2014/01/estranho-no-lago.jpg)
Ao contrário dos suspenses americanos, nos quais o mistério reside em deixar oculta a identidade do assassino, em “Um Estranho no Lago”, somos testemunha da responsabilidade de Michel na morte. O jogo do belo rapaz é tão sedutor que nem o assassinato configura motivo para que Franck se afaste, mesmo sabendo que seu amado é o algoz. O ótimo suspense é construído sobre o que pode acontecer a Franck à medida que fortemente se entrega na destreza de Michel. A partir daí, o sexo passa a ser coadjuvante na trama da história, ainda que muitos nus – frontais, inclusive – e uma cena de sexo (na qual um plano detalhe mostra a ejaculação do ator Pierre Delandonchamps) possam perturbar os mais puritanos.
![O longa de Alain Guiraudie contém muitas cenas de sexo explícito](https://revistapagu.com.br/wp-content/uploads/2014/01/Um-estranho-no-lago-Divulgação1.jpg)
Para mim, a grande reflexão que Guiraudie quis passar por meio do filme é sobre o medo da solidão, que leva as pessoas a abrirem mão do amor próprio e, principalmente, do instinto de segurança. O medo da solidão é o motivo principal pelo qual Franck investe num “relacionamento” com Michel e passa a frequentar diariamente o lago. Embora um assassinato tenha acontecido, os mesmos frequentadores do local continuam a aparecer, como se nada tivesse se passado. As roupas do garoto morto permanecem jogadas próximo ao lago, assim como seu carro fica parado há dias num estacionamento improvisado próximo ao bosque. E ninguém se importa. Quando os pertences do falecido são recolhidos, é o sinal de que um policial à paisana passa a investigar o caso. Nesse momento, o longa adquire uma nuance de investigação mais tradicional mesmo. O investigador inquire todas as personagens, inclusive Franck, que lança uma frase fria e perturbadora ao responder que “Não se pode parar de viver”, quando questionado por que não deixou de ir ao lago depois do caso.
![Cartaz oficial em português](https://revistapagu.com.br/wp-content/uploads/2014/01/cartaz-de-um-estranho-no-lago-de-alain-guiraudie-1385501341027_359x525.jpg)
Quanto às características técnicas, “Um Estranho no Lago” é um filme que se sai muito bem. O som – como um típico filme francês – valoriza a captação direta e deixa de lado a utilização de trilha sonora, o que favorece o clima de suspense. A fotografia é muito bela e a direção de Guiraudie soube bem como trabalhar com a passagem do dia no local, obtendo o melhor clarão e a melhor escuridão das paisagens para, mais uma vez, favorecer o suspense.
Ainda sobre a direção, pode-se dizer que a escolha pela repetição de planos, como a chegada do carro de Franck ao estacionamento improvisado próximo ao lago, ganha um significado simbólico no filme e diz bastante sobre sua posição em relação àquele lugar. A cena final é a melhor de todo o longa, radicalizando a intenção de Guiraudie sobre o quanto se pode abrir mão do instinto de segurança em troca do desejo e do amor.
O voyeurismo presente na obra – comprovado em diversos planos nos quais as personagens parecem olhar para a câmera como que para o próprio espectador – faz uma alusão a “Janela Indiscreta”, um dos melhores e mais reconhecidos filmes do mestre do suspense, Alfred Hitchcock. O roteiro, no entanto, é que parece não estar muito bem costurado, principalmente em informar com precisão como o amigo de Franck, o afastado Henri, sempre soube que Michel era o assassino.
![Henri (à direita), sempre calado e afastado, chama a atenção de Franck (à esquerda). Os dois acabam se tornando amigos.](https://revistapagu.com.br/wp-content/uploads/2014/01/21004692_20130510142030711.jpg-r_640_600-b_1_D6D6D6-f_jpg-q_x-xxyxx-650x400.jpg)
Se tudo que foi falado até agora não foi suficiente para chamar a sua atenção, eis os reconhecimentos de “Um Estranho no Lago”: o longa foi o ganhador da Palma Gay, prêmio destinado a filmes com temática homossexual no Festival de Cannes, e do prêmio de direção na Mostra Um Certo Olhar, do mesmo festival. Mas a principal consideração vem da famosa “Cahiers du Cinema”, tendo sido eleito pela revista francesa como o melhor filme de 2013.
Sagitariano carioca que mora em Natal. Jornalista formado pela UFRJ e UFRN. Apaixonado por cinema, praia e viagens.