‘A Garota no Trem’ desvia das comparações e se apresenta como um dos melhores thrillers do ano

A Garota no Trem, o novo filme do diretor (e ator) Tate Taylor, tem sofrido bastante com as comparações com a sensação de 2 anos atrás, Garota Exemplar. Pode ser simplesmente pela semelhança no título. Talvez por ambos serem thrillers com um grande apelo psicológico. Talvez por serem baseados em livros na lista dos mais vendidos. Talvez por tratar de relações deturpadas entre homem e mulher. Talvez seja por tudo isso. Mas eu te garanto, são dois filmes completamente diferentes e a comparação entre os dois é quase covarde.

Antes de tudo, Tate, embora talentoso, está a anos-luz de David Fincher, como diretor. Em termos de elenco, Garota Exemplar conta com Ben Affleck e Rosamund Pike, que carregam um apelo muito maior em relação ao público. Os dois filmes podem usar as mesmas armas, mas com táticas e propósitos diferentes. São como dois irmãos, criados juntos, mas que desenvolveram aptidões distintas. Enquanto Garota Exemplar é um filme mais intimista, que entra sob a sua pele e se revela a meio caminho do fim, permitindo a audiência a apreciar a maestria da história, A Garota no Trem não demora a demonstrar sua vocação: um clássico filme de “quem matou quem? E porque?” guardando pistas e informações relevantes até o limite da revelação. E é muito bem-sucedido nisso. Sim, o trabalho de Fincher é superior e, como disse anteriormente, é covardia compará-los. Agora que tiramos esse elefante da sala, vamos ao que interessa. E sim, o que vocês estão prestes a ler a seguir é uma crítica elogiosa ao filme de Taylor.

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O thriller tem como protagonista Rachel, uma alcoólatra que se separou do seu marido após não conseguir engravidar e descobrir que estava sendo traída. O filme trata de vários temas pertinentes, como alcoolismo, misoginia, traição e violência. Trata também de voyeurismo. Rachel vê, da janela do trem, Megan e Scott como um casal perfeito, a própria personificação do amor. Mas eles passam muito longe de ser isso. Mais tarde, Scott se mostra um marido abusivo e Megan, uma mulher traumatizada e infeliz que se vê desesperadamente sem saída, vivendo uma vida que ela não deseja, trabalhando como babá para os vizinhos. Qualquer metáfora relacionada ao uso de mídias sociais para exibir e observar vidas não é mera coincidência; em uma curta cena, inclusive, torna essa referência bem literal.

Tom, ex-marido de Rachel e Anna parecem levar um casamento feliz com sua bebê, Evie (da qual Megan é babá), mas a forma como o filme é dirigido sempre nos faz olhar desconfiadamente para esse novo lar, afinal ele nasceu da traição de Tom, o que devastou Rachel e a trouxe ao severo nível de alcoolismo e sociopatia que ela se encontra. O gatilho que dispara de vez o filme é o misterioso assassinato de Megan, a personagem que, mesmo morta durante a maior parte do filme, une todas as pontas da narrativa.

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Em termos de montagem, os flashbacks constantes podem ser um aborrecimento, mas tem função bem definida: mexer na cronologia é mexer no entendimento do espectador do que está acontecendo. Cada flashback preenche uma lacuna e abre outra, o que deixa o público sempre tentando adivinhar o que vem a seguir, enquanto ainda nos deixa incapazes de abandonar os palpites anteriores. O roteiro se preocupa o tempo todo em como guiar a audiência, usando até mesmo, sequências que não são reais, mas que se tornam pertinentes quando fazem da percepção dos personagens a mesma dos espectadores.

Outro ponto forte do filme é sua concisão. Todo personagem importa. O roteiro não perde tempo nos apresentando quem é o namorado de adolescência de Megan, ou explorando demais personagens periféricos, como o ruivo que Rachel vê sempre no trem ou a amiga, dona do apartamento onde ela mora. Os personagens e suas interações são explorados na medida do essencial. Mesmo o breve contato de Rachel com o psiquiatra de Megan, Dr. Abdic, tem uma função importante. Em certo momento da consulta, Rachel diz que, ao contarem o que ela faz durante seus blackouts alcoólicos, ela se sente mal, mas é incapaz de se arrepender plenamente, por parecer algo tão distante do que ela realmente é. É a primeira pista de que embora ela seja, sem dúvida, uma pessoa problemática, ela não é o monstro que a fizeram acreditar que era. Mais tarde, Martha (Lisa Kudrow, a eterna Phoebe de Friends) também se torna personagem fundamental para ajudar a solucionar parte do mistério que envolve a trama.

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A fotografia melancólica e as vezes irreal reflete o constante estado de torpor mental da protagonista interpretada por Emily Blunt. E porque não dizer, também das personagens de Halley Bennet e Rebecca Ferguson, Megan e Anna, respectivamente. Assim, a história inteira gira em torno dessas três mulheres, cada uma vítima e vilã em suas próprias medidas, tendo seus destinos cruzados e conduzidas a um final surpreendente. Não é que o filme não nos dê pistas suficientes. Enquanto os créditos finais rolam é fácil elencar alguns pontos que indicam a revelação do último ato. A eficiência do roteiro está justamente em apresentar pistas, mas nos distrair delas, impedindo-nos de vê-las como evidências.

A Garota no Trem nos prende do começo ao fim, e isso não pode ser dito sobre qualquer filme feito atualmente. Com o homicídio de Megan solucionado, percebemos que o verdadeiro sentido do filme está muito mais nas revelações e descobertas de Rachel acerca de si mesma. Se, a princípio, o trem serve como uma prisão da qual Rachel observa com inveja o que ela deseja que fosse a sua vida, ao final o trem é uma perfeita alegoria da jornada e transformação da protagonista, que finalmente chega a um novo lugar e se descobre alguém que ela não imaginava.

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Victor Hugo Roque
Victor Hugo Roque

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