Publicado em 1997, Infinite Jest é finalmente traduzido no Brasil. O alentado livro de David Foster Wallace foi celebrado em todo o mundo como mais um desses renovadores do romance, de sua forma mutante e tomada de possibilidades. Com quase 1200 páginas na edição brasileira, publicada no fim de 2014 pela Companhia das Letras com tradução de Caetano Galindo, há certa dificuldade em acessar a proposta da obra; a linguagem científica, a pletora de personagens e situações aparentemente desconexas, as imensas e complicadas notas de rodapé que vão se somando ao corpo do romance e a divisão por anos e épocas distópicas criam uma amálgama de relações que exigem bastante do leitor. É um pacto venenoso. Mas uma vez selado, torna-se um delírio reificante – nos aproxima de uma literatura estranha, cerebral, organizada como se por um robô ou alguém tocado totalmente pelos sintomas da obsessão.
O enredo talvez interesse a muitos: num cenário em que os Estados Unidos e o Canadá viram uma coisa só, uma Organização das Nações da América do Norte, o tempo é vendido a grandes corporações – os anos passam a ser contados por nomes estapafúrdios, tais como “Ano da Fralda Geriátrica Depend”. Dentro desse pequeno apocalipse, a família Incandenza é retratada como mito disfuncional dessa nova América. Os três filhos de James O. Incandeza, cientista e cineasta suicida cuja obra cinematográfica é belamente descrita na nota de rodapé n. 24, chamados Hal, Orin e Mario, tentam zelar pela memória do pai e se organizarem dentro de suas próprias autoconsciências devastadoras, ao mesmo tempo em que tentam evitar que terroristas e megacorporações utilizem Infinite Jest, um dos tantos filmes de James Incandeza, como arma de guerra.
Tentando descrever friamente, o enredo pode ser esse. Mas há algo além nas microhistorietas, notas de rodapé e complicadas e recomplicadas metanarrativas que se espraiam pelas intermináveis páginas do romance. A cadência sensorial que o livro de DFW nos proporciona vai além da simples fabulação. Por sua proposta anárquica, por sua vontade de transformar a forma do romance em uma espécie de máquina total da linguagem, o universo em que somos jogados permite tantas leituras quanto espécies de buracos negros narrativos pelos quais o leitor tantas vezes é engolido. É como uma cidade caótica e elevada. É como tentar se localizar num país sitiado, repleto de ruas desconhecidas pelas quais se vai experimentando e reconhecendo ao longo da travessia.
Ancorado entre a página 480 e 500 de Graça Infinita, já não sabia se atravessava 10 anos de uma história não-linear da América ou um compêndio erudito de termos científicos, lógica sensibilista e alusões à senilidade advinda do vício. David Foster Wallace, motivo de obsessão na literatura contemporânea, produziu o que é, de longe, o grande romance dessa Era. Sim, apesar dos 18 anos do seu lançamento em terras americanas, o monumental volume continua a exigir horas e horas de análises, anotações, imersões e notas de rodapé que só mesmo a vanguarda do início do século XX poderia proporcionar (aí por vanguarda, esse perigoso termo, entendemos um Ulisses (Joyce) ou um Beckett da prosa).
Exigindo fôlego, disposição e erudição do leitor, Graça Infinita recompensa o esforço – mas cabe aquela visão do Borges, ao reiterar Montaigne no capítulo ‘O Livro’ de Borges Oral, que certa alegria se esgota ao enfrentarmos um livro que custa esforço. Todavia, a estafante caminhada premia o leitor com algo que demonstra o poder caótico e destrutivo das obsessões e vícios; ao fim de tudo, o leitor pode estar psiquicamente aos restos, vilipendiado e destruído – mas só a partir dessa experiência-limite é que se observa a grandeza e a agudeza de DFW, esse marco da vida literária contemporânea.
Para acessar a paranoia proposta por DFW, é preciso liquidar o tempo, as estruturas da modernidade e reconhecer a tradição como um marco fluente – para que flua, no entanto, é preciso ser cerebral como quem decora uma enciclopédia. É um infinito à frente.
Não é fácil. Mas sigamos.
Por Pedro Lucas, especial para o blog O CHAPLIN