“A Qualquer Custo” – Como os Faroestes Modernos Devem Ser

Logo na primeira cena, em uma ótima tomada contínua, A Qualquer Custo (Hell or High Water, 2016) dá o tom da história que virá. A cena urbana é dilapidada, uma placa nos coloca no Texas, e uma pichação na parede indica um cenário de crise imobiliária, com as pessoas da comunidade perdendo suas propriedades. Um assalto a uma agência bancária nos apresenta os dois personagens principais, arquétipos clássicos (quase clichês) do cinema: um inteligente, paciente, com um plano; o outro cabeça quente, nervoso e agressivo.

Esse não será o primeiro assalto do dia e, como o filme irá nos revelar, toda ação tem seus porquês. Em meio à crise econômica devastadora nas pequenas comunidades rurais americanas (de onde foram lançadas as sementes anti-establishment que possibilitaram a eleição de Donald Trump), os irmãos Howard, prestes a perder a fazenda da família, executam os assaltos de forma metódica: sempre pequenas notas, sempre pequenas quantias, sempre sem clientes, sempre cidades pequenas. O dinheiro nessa história não é o fim, mas um meio e, embora essa não seja uma releitura de Robin Hood, está claro que por trás do plano há uma injustiça por ser corrigida.

Chris Pine e Ben Foster mostram boa química como a dupla de irmãos por trás dos crimes. A calma e paciência de Toby (Chris Pine) se contrasta perfeitamente com a impulsividade e irresponsabilidade do irmão mais velho Tanner (Ben Foster). Toby tem em sua motivação o bem-estar de sua ex-mulher e seus filhos, enquanto Tanner, recém-saído da cadeia, aceita embarcar na empreitada como o único com real experiência com a violência. Desde o começo é claro ao espectador que o comportamento errático de Tanner pode botar tudo a perder, mas seu papel como agente do caos é o que possibilita Toby de levar o plano adiante.

Amor de irmão: Chris Pine e Ben Foster como os irmãos Howard.

Se a história e os cenários são muito bem elaborados, Jeff Bridges, interpretando o Texas Ranger no encalço dos irmãos Howard, é uma distração desnecessária. Não pelo seu carisma e presença, é claro, mas porque o ator não consegue se livrar do personagem que lhe rendeu a indicação ao Oscar por Bravura Indômita. Jeff Bridges aplica a mesma voz e personalidade com que caracterizou Rooster Cogburn 6 anos atrás. A atuação parece preguiçosa para um ator que claramente pode fazer mais, e a sua indicação ao Oscar desse ano não me parece merecida.

Em sua essência, A Qualquer Custo é um faroeste moderno. É uma história que poderia se passar 120 anos atrás, mas que de forma muito inteligente é contada nos dias atuais. Estão lá o anti-herói e seu companheiro, assaltando Bancos dentro de um plano maior, que será apenas compreendido em sua totalidade apenas ao final da história; o homem da lei arrogante e falastrão, mas bom de tiro, prestes a se aposentar; o “Nativo” que se presta a ouvir preconceitos e piadas; e a figura do “Vilão”, que se não é mais o malvado senhor de terras, agora se personifica na estrutura burocrática e formal de uma organização capitalista sem rosto. Embora os carros substituam os cavalos e as estradas entrem no lugar das trilhas, as grandes paisagens áridas (agora exalando decadência) do oeste do Texas estão lá, assim como os bangue-bangues. Tudo isso é combinado, como em todos os bons faroestes, de uma complexidade moral que nos impede de julgar precisamente os personagens.

O diretor David Mackenzie consegue aqui mostrar a mesma habilidade que em seu último (e ótimo) filme, Encarcerado (2013), estabelecendo novamente uma relação familiar em cenário bruto de forma convincente. O roteirista, Taylor Sheridan, permanece chamando minha curiosidade. Me lembro de seu papel como Xerife nas duas primeiras temporadas da série “Sons of Anarchy”, seu primeiro papel de maior destaque (no qual não mostrava grande habilidade). Após deixar a série, contudo, Sheridan parece ter emplacado como um roteirista de qualidade. Em apenas três anos assinou o roteiro do excepcional Sicário (2015), foi indicado ao Oscar deste ano pelo roteiro de A Qualquer Custo e seu próximo filme, Wind River (2017), no qual assume também o papel de diretor, saiu do Festival de Sundance recheado de críticas positivas e boas impressões.

O “Xerife” e o seu companheiro “Nativo”: arquétipos dos faroestes antigos em nova versão.

A Qualquer Custo, assim como La La Land fez com musicais, mostra um excelente exemplo sobre como renovar gêneros. O Faroeste não precisa estar necessariamente vinculado a um período na história: todos os elementos que encantam no gênero há gerações podem muito bem ser resgatados e trabalhados no mundo contemporâneo. O “Novo” Oeste ainda é (e sempre será) uma região recheada de conflitos e injustiças, heróis, anti-heróis e vilões, cheia de boas histórias a se contar. A Qualquer Custo é um grande exemplo disso e vale a sua atenção.

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Diego Paes
Formado em Relações Internacionais, Mestre e talvez Doutor (me dê alguns meses) em Administração, mas que tem certeza de que está na área errada. Pode ser encontrado com facilidade em seu habitat natural: salas de cinema. Já viu três filmes no cinema no mesmo dia mais de uma vez e tem todas as fichas do IMDb na cabeça. Ainda está na metade da lista dos Kurosawa e vai tentar te convencer que Kieslowski é o melhor diretor de todos os tempos.
Diego Paes

Diego Paes

Formado em Relações Internacionais, Mestre e talvez Doutor (me dê alguns meses) em Administração, mas que tem certeza de que está na área errada. Pode ser encontrado com facilidade em seu habitat natural: salas de cinema. Já viu três filmes no cinema no mesmo dia mais de uma vez e tem todas as fichas do IMDb na cabeça. Ainda está na metade da lista dos Kurosawa e vai tentar te convencer que Kieslowski é o melhor diretor de todos os tempos.

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