Uma das características comuns a todos os países da América Latina é o grande abismo social que separa os mais ricos dos mais pobres. Essa característica não poderia deixar de ser abordada pelas artes produzidas no nosso continente, desde as mais francas – que, pela crueza, causam um certo choque ao público que ignora esse nosso aspecto – às mais sutis. O Festival do Rio de 2014 estava repleto de filmes com essa temática e um deles é o primeiro longa do diretor argentino Benjamim Naishtat, “Bem Perto de Buenos Aires” (“Historia del Miedo”, 2014).
No filme de Naishtat, um helicóptero da polícia sobrevoa um condomínio fechado na Região Metropolitana de Buenos Aires. Esse episódio é acompanhado pelo aparecimento de um buraco na cerca que isola as casas. Os dois acontecimentos fazem com que a pequena comunidade imagine um submundo social onde criaturas duvidosas e imprevisíveis estão à espreita, observando seu conforto material.
A forma como a crítica às classes média e alta vincula-se ao thriller é similar ao que acontece no filme brasileiro “O Som ao Redor” (2012). Contudo, a tensão social no filme de Naishtat não tem origem aparente e não desemboca em nenhum resultado, ao contrário do filme pernambucano, no qual a rememoração à sociedade colonial escravocrata brasileira justifica tudo.
A intenção do roteiro de Naishtat é mostrar, exclusivamente, como essa tensão social se manifesta no cotidiano das pessoas e, por isso, o público pode se sentir perdido, tentando completar o sentido de tudo o que acontece na tela. Isso não desmerece o filme argentino, mas apenas o torna fiel à abordagem desse medo social sem pretensões didáticas. Outro aspecto que vale a pena destacar é a excelência dos efeitos de som e da trilha sonora, utilizados para os personagens e momentos adequados.
Confira, abaixo, uma entrevista exclusiva que O CHAPLIN realizou com o diretor:
O CHAPLIN: Seu filme é inspirado em algum bairro de Buenos Aires? Qual?
BENJAMIN NAISHTAT: O local de inspiração não foi apenas um, mas vários bairros de Buenos Aires. Na verdade, o filme acontece não exatamente em Buenos Aires, mas como o título em português sugere, é “Bem Perto de Buenos Aires”, cerca de 20 quilômetros do centro da cidade, em lugares onde é possível encontrar, lado a lado, condomínios com segurança privada e favelas, uma coisa junto da outra. Num lugar assim existe muita tensão social e esse problema é comum a todas as grandes cidades da América Latina, como Buenos Aires, Rio de Janeiro, São Paulo, Cidade do México, dentre outras.
O CHAPLIN: Quanto tempo você gastou para fazer todo o filme?
BENJAMIN NAISHTAT: No total, quatro anos. Eu passei cerca de 3 anos escrevendo o roteiro e, sobretudo, procurando financiamento. Quando um diretor vai fazer seu primeiro longa-metragem, é muito difícil encontrar a confiança dos investidores e das instituições de fomento ao cinema porque ele não é conhecido. Isso tomou muito do meu tempo, energia e trabalho. A filmagem durou cinco semanas e a pós-produção, mais ou menos, oito meses. A gente filmou em fevereiro e março de 2013 e em janeiro de 2014, “Bem Perto de Buenos Aires” já estava estreando na mostra competitiva do Festival de Berlim.
O CHAPLIN: No seu filme, fica muito clara, desde os trailers, uma alusão aos thrillers americanos. Você realmente se inspirou nesses filmes para produzir o seu, mesmo que se diferencie do gênero hollywoodiano por haver essa crítica social?
BENJAMIN NAISHTAT: Sim. Eu adoro filmes de terror norte-americano, principalmente aqueles lançados nas décadas de 1970 e 1980, como “Assault on Precinct 13” (1976), de John Carpenter. O meu filme funciona de forma parecida a “Alien” (1979), pois em “Alien” os personagens tem medo de uma coisa que não podem ver. Aqui, acontece coisa parecida. Pessoas que moram nos bairros privados passam a maior parte do tempo assustadas, com medo de alguma coisa que nunca conseguem identificar. Sempre projetam um monstro que não tem forma. Então, a construção do medo no filme é como nesse thriller clássico.
O CHAPLIN: Falando em outros filmes, quais são os seus preferidos?
BENJAMIN NAISHTAT: É sempre difícil responder essa pergunta, mas eu cito alguns diretores. Gosto dos filmes de John Cassavettes (considerado o pai do cinema alternativo dos Estados Unidos), de John Carpenter, como já falei, e Lucrécia Martel, especialmente o filme “La Ciénaga” (2001). “Terra em Transe” (1967), de Gláuber Rocha, também é um dos meus favoritos.
O CHAPLIN: Para você, a crítica social misturada com características do cinema dos estados Unidos é a característica fundamental dos filmes latino-americanos?
BENJAMIN NAISHTAT: Há bastante crítica social porque a realidade obriga que certos temas sejam tratados; caso contrário, o diretor seria um cego. Muitos filmes daqui são discursivos, pedagógicos, que tentam explicar para o público tudo que ele já sabe, como o fato de que a sociedade latino-americana é injusta e violenta. Mas há uma corrente de produzir filmes de entretenimento, com força cinematográfica, mas nos quais os espectadores também encontram uma profunda questão social e política. Aí, sim, reúne-se uma tradição hollywoodiana com uma inquietude política latino-americana. Eu tentei escrever o meu nessa linha.
O CHAPLIN: Qual é o futuro do cinema argentino para você? O cinema argentino é a potência do cinema latino-americano? Afinal, em comparação com o cinema brasileiro, vocês estão ganhando de dois a zero em se tratando de Óscars na categoria de melhor filme estrangeiro.
BENJAMIN NAISHTAT: Eu não diria que a Argentina é a líder. Mas digo que vivemos um bom momento para o cinema na América Latina em geral porque há muita produção, há muita diversidade. Temos uma oportunidade histórica de mudar a cultura de que nós não vemos nossos próprio cinema. Ainda há cerca 90% de participação dos filmes americanos no mercado, mas há possibilidade de mudar isso com políticas de estado. E, nesse sentido, Argentina tem uma boa política de estado, subsidiando a produção e reservando salas de cinemas próprias para o cinema argentino, com entradas mais baratas. Há incentivos, mas ainda há muito a ser feito. Em comparação com os anos 90, por exemplo, há mais cinemas, há mais visibilidade nos festivais em todo o mundo. E não só filmes argentinos, mas brasileiros, chilenos, mexicanos etc.
O CHAPLIN: Como no futebol, você acredita que existe uma rivalidade entre o cinema da Argentina e o cinema do Brasil?
BENJAMIN NAISHTAT: Não, ao contrário, tem muita parceria. Eu tenho vários amigos, diretores brasileiros, e geralmente é isso que ocorre em toda a América Latina. A gente se ajuda, com conselhos, principalmente sobre como encontrar financiamento e para onde levar o filme.
Sagitariano carioca que mora em Natal. Jornalista formado pela UFRJ e UFRN. Apaixonado por cinema, praia e viagens.