Há um motivo claro para a arte historicamente se opor a governos ditatoriais e autoritários. O artista é, por sua essência, um embaixador da liberdade de pensamento e de expressão, conceitos que são subjugados em um regime como os citados. Em um país em que discutir socialismo, comunismo, questões trabalhista e de gênero, por exemplo, tornou-se automaticamente sinônimo de “doutrinação ideológica”, uma vez que o governo vigente insiste em uma pauta focada unicamente no pragmatismo econômico e conservador, é de se espantar que um artista opte por ocupar o lado institucional da história.
Mas acredite, caro leitor, Freud explica. Não sei se Freud seria o cara, deixo a discussão aos psicanalistas, mas um pouco de raciocínio crítico e visão global da situação me foi suficiente para fundar uma teoria, à qual eu gostaria de compartilhar com vocês.
Há uns bons anos fui apresentada a um cara simpático, carismático, relativamente inteligente, amante das artes e do bom gosto. Jornalista e escritor, o indivíduo gabava-se de feitos e títulos glamourosos: uma entrevista concedida por uma diva hollywoodiana; uma amizade com nome relevante da literatura nacional; um caso com algum ator outrora badalado; e um significativo conhecimento acerca dos bastidores das artes.
Um pouco de convivência foi suficiente para compreender que esse “amigo” fazia parte de um grupo de artistas que apelido carinhosamente de “bonde da Regina Duarte”. Conheço outros tipos que se encaixam no bonde. Esse grupo gosta mesmo é dos holofotes. Tem a arte enquanto objeto de contemplação. Arte boa é arte bela. Performance que incomoda, agride ou mexe no brio não é arte – é lixo ideológico marxista. É por aí.
Cativos à sustentação e nutrição do ego, e habituados às belas divas, aos galãs impecáveis, e ao glamour que envolve o cenário artístico elitista (dos quais a festa do Oscar, limitada, inacessível e cheia de regalos, sempre foi a perfeita representação), o bonde da Regina Duarte se assusta com a popularização da arte. Com o funk, o hip hop, o nu, o grito, a luta, e obviamente, o senso crítico.
Voltemos ao meu conhecido, o “artista” do bonde. Há poucos meses, visitou-me em minha página do Facebook. Comentou algumas postagens recentes, xingando-me, gratuitamente, das piores ofensas e desejando-me horripilâncias pelo simples fato de termos posições políticas diferentes. Em seguida, deletou-me de sua rede de amigos. Dias depois, soube que fez o mesmo com uma amiga de longa data ainda mais próxima, a quem devia favores e, acredito, o seu resgate do ostracismo em um período em que poucos o conheciam localmente. A postura, seguramente, não é coerente com a essência do artista, uma vez que, para merecer o título, não é preciso apenas expressar-se, mas compreender e defender, de forma intrínseca, o direito de fazê-lo.
O artista apoiador do fascismo é saudosista. Ele sente falta do período em que artistas eram seres inacessíveis, “para poucos”. Ele lamenta e nega que a arte tenha chegado à periferia, porque o lugar dela é no Olimpo dos deuses. E mais: ele ignora o caráter de resistência crítica da arte, porque, para ele, arte boa é arte parnasiana. No máximo, simbolista. Arte etérea. Arte para se contemplar. Arte boa é arte distante. Já a arte que toca, incomoda, transforma e clama – ah! isso é coisa de esquerdista desocupado e va-ga-bun-do. Tem que mudar isso aí.

Jornalista, cinéfila incurável e escritora em formação. Típica escorpiana. Cearense natural e potiguar adotada. Apaixonada por cinema, literatura, música, arte e pessoas. Especialista em Cinema e mestranda em Estudos da Mídia (PPgEM/UFRN). É diretora deste site.