‘Corra!’: Assustador, Cômico e Brilhante

Corra! (Get Out, 2017), que estreia essa semana (finalmente!) nos cinemas brasileiros, é filme raro hoje em dia – talvez sempre tenha sido. Jordan Peele, que dirige o filme e assina o roteiro, consegue equilibrar uma discussão racial profunda em um filme que é, ao mesmo tempo, genuinamente assustador e cômico. Entretém ao mesmo tempo em que faz pensar; e todos os simbolismos e segredos do filme certamente vão me fazer revisitá-lo algumas vezes.

Daniel Kaluuya, como Chris: subúrbios brancos estão longe de ser um lugar seguro para todos.

Provavelmente você já é familiar com o trabalho de Peele através de vídeos do Youtube. Jordan Peele é parte da dupla de comédia Key & Peele, de um extinto programa de sketches do Comedy Central nos EUA. Se não conhece, abra a aba do lado e procure algumas das dezenas de curtas da dupla no Youtube, sátiras e comentários (sobre questões raciais ou não) absolutamente geniais.

Em sua estreia dirigindo um longa metragem, Peele consegue traduzir o brilhantismo de suas curtas sketches em um filme que em sua raiz é uma sátira, com uma trama cômica e absurda que mais parece retirada de um filme de blaxpoitation dos anos 1970 (à la Blacula e Foxy Brown). Mas mesmo que momentos e performances cômicas sejam satisfatórios, não são capazes de suavizar os muitos momentos “WTF!” ao longo do filme. Corra!, além de uma sátira, é um filme de terror psicológico extremamente sólido e que apela para sensações, ideias e medos que, acredito, irão aterrorizar muito mais negros do que brancos.

Isso porque ignora toda a bobagem do discurso sobre uma “América pós-racial” e traz para o centro do filme, de forma explícita ou não, o preconceito e o desconforto dos negros nos EUA (e que com certeza, muitos no Brasil irão se identificar) em meio a uma sociedade que mesmo quando se esforça em busca de uma integração, fracassa retumbantemente.

Evitando spoilers, é suficiente dizer que a trama gira em torno de Chris (Daniel Kaluuya), um jovem fotógrafo, a caminho de seu primeiro contato com os pais de sua namorada, Rose (Allison Williams). O que já é um motivo de frio na barriga para todos nós, encontra um motivo adicional de apreensão para Chris: ele é negro e Rose e sua família são típicos WASPs (brancos, anglo-saxões e protestantes), habitantes de um subúrbio rico. Chris, através de sua experiência pessoal, sabe que essa história nem sempre acaba bem. Rose garante que não há problema: “Eles não têm problemas com negros! Meu pai votaria no Obama uma terceira vez se fosse possível!

Allison Williams como Rose e Daniel Kaluuya como Chris: muito longe de uma sociedade pós-racial.

A visita de Chris ao subúrbio atinge todos os pontos de incomodo possíveis: policiais imediatamente desconfiando de sua presença, empregados negros em uma casa de brancos, e todo o tipo de especulação acerca de seu potencial físico e sexual por parte de WASPs liberais aparentemente muito bem-intencionados, mas sem a menor ideia do quão inapropriados são seus comentários. E é aí que as coisas realmente começam a ficar desconfortáveis.

Pois como todo bom terror psicológico, nada é o que aparenta ser na superfície e o comportamento atípico de seus anfitriões passo a passo se torna cada vez mais sinistro. O filme é muito preciso, tomando cuidado para que suas revelações atinjam o espectador no momento certo. Mas desde cedo temos a sensação que Chris é um sapo dentro de uma panela de água morna, esquentando a cada minuto. O diretor é extremamente competente em povoar a tela com referências e simbolismos que remetem a experiência histórica do negro nos EUA e como são observados hoje: há reconhecimento e admiração por suas proezas, mas resistem a lhes dar real poder de voz e autonomia.

O cenário de subúrbio nos EUA não é escolhido por acidente. Chris sabe que em subúrbios brancos como aquele ele está em uma condição vulnerável, em um lugar ao qual “não pertence”. Não é mero acaso que o filme foi lançado no final de semana do aniversário de 5 anos do caso Trayvon Martin. Martin era negro e alto, tinha 17 anos de idade, e andava por um subúrbio na Flórida onde sua família morava quando foi perseguido e assassinado por “parecer suspeito”. Seu assassino foi inocentado, assim como em vários outros casos.

Betty Gabriel como a governanta Georgina: atuação verdadeiramente sinistra.

Daniel Kaluuya (que talvez você reconheça do episódio das bicicletas de Black Mirror) é excelente no papel de Chris, demonstrando vulnerabilidade, confiança e medo com igual competência. Allison Williams (de Girls, a série mais white people problems de todos os tempos) consegue fazer uma boa estreia no cinema e tem um papel interessante no desenrolar da trama. Na parte cômica, quem rouba a cena é LilRel Howey no papel de Rod, o segurança de aeroporto amigo de Chris, que acaba servindo como avatar do espectador tentando juntar as peças (de forma hilária) do mistério que vai sendo construído.

Jordan Peele não poderia ter feito uma estreia melhor como diretor, mostrando uma excelente sensibilidade para a montagem de cenas e de visuais que com muita clareza expressam o subtexto do filme. Da trilha sonora, passando por cada linha de diálogo, até a roupa dos personagens, tudo parece ter sido escolhido com muito cuidado para reforçar os grandes temas em questão. É um filme que não poderia ter sido escrito ou dirigido com igual potência por uma pessoa branca, sendo o produto da mente de alguém com uma grande percepção tragicômica e experiência em primeira mão sobre as relações raciais nos EUA.

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Diego Paes
Formado em Relações Internacionais, Mestre e talvez Doutor (me dê alguns meses) em Administração, mas que tem certeza de que está na área errada. Pode ser encontrado com facilidade em seu habitat natural: salas de cinema. Já viu três filmes no cinema no mesmo dia mais de uma vez e tem todas as fichas do IMDb na cabeça. Ainda está na metade da lista dos Kurosawa e vai tentar te convencer que Kieslowski é o melhor diretor de todos os tempos.
Diego Paes

Diego Paes

Formado em Relações Internacionais, Mestre e talvez Doutor (me dê alguns meses) em Administração, mas que tem certeza de que está na área errada. Pode ser encontrado com facilidade em seu habitat natural: salas de cinema. Já viu três filmes no cinema no mesmo dia mais de uma vez e tem todas as fichas do IMDb na cabeça. Ainda está na metade da lista dos Kurosawa e vai tentar te convencer que Kieslowski é o melhor diretor de todos os tempos.

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