“Meu corpo ferido, por mais que eu ainda perca energia, precisa portanto virar literatura. De um jeito ou de outro, a assombração inicial era verdadeira. Vim mesmo parar dentro de um livro meu. Dois contos não são suficientes para o tamanho do meu trauma (ou da pele do meu corpo). Preciso fazer um romance.“
O que de início intriga em Divórcio (2013, editora Alfaguara) é o conflito que causa no leitor, que se pergunta o quê daquilo é ficção e o que teria sido realidade. Assim como em O Céu dos Suicidas, seu livro anterior, aqui o protagonista é o próprio escritor, Ricardo Lísias. A diferença é que neste recente ele se expõe bem mais, e a outras pessoas também (apenas as situações, pois sempre deixa um [X] no lugar do nome que deseja ocultar).

Sabe-se que Ricardo Lísias realmente publicou dois contos sobre seu divórcio, e um deles, na revista Piauí, fez bastante sucesso. Essa situação é toda narrada durante o romance, levando primeiro a crer que realmente se trata de um livro autobiográfico, para logo depois surgirem acontecimentos inverossímeis, e a confusão “ficção x realidade” acesa lá o tempo todo, como se fosse intenção do autor causá-la. Mas isto pertence à literatura, e se a trama consegue envolver o leitor, o resto fica irrelevante. E envolve.
Divórcio é um livro, também, sobre a violência dos sentimentos. O impacto que se sente ao entrar em contato com eles em sua natureza crua, desnuda. Quando o protagonista-autor decreta no início “Morro só mais uma vez” após se ver naquele estado lamentável, sentindo-se morto, inicia seu processo de recuperação do trauma de um relacionamento extremo. Essa recuperação, sua nova pele, acontece em meio ao reavivamento de memórias desde a infância, o treinamento para a corrida de São Silvestre que está prestes a ocorrer, e o desenrolar jurídico (sem nenhum juridiquês, bom ressaltar) do divórcio desastroso.

Lísias vai e volta no tempo e experimenta até onde vai a literatura, com muita leveza e sempre com reflexões bem elaboradas. Quando se tratam de elogios a um livro bom, às vezes não é necessário dizer mais que é um livro bem escrito, que prende o leitor.
Assim como em O Céu dos Suicidas, Ricardo se escreve, pelos eventos que causa, como uma pessoa bastante desequilibrada, que vai do extremo da irritação às gargalhadas em pouco tempo. Como se trata de um trauma, isso é compreensível. E não se pode exigir verossimilhança o tempo inteiro. São nessas ocasiões de descontrole que o autor aproveita para criticar a elite cultural brasileira, o jornalismo apoiado em boatos e o alpinismo social – características que atribui a sua ex-mulher, levantando uma discussão sobre ética.
Divórcio não é um romance misógino, só se está diante de um livro que expõe os acontecimentos de uma separação traumática apenas de um lado, de um homem, caindo bem à ex-mulher seu papel de “vilã”, numa análise superficial. Se há vilão no livro, são os sentimentos inevitáveis de dor e frustração, inevitáveis, de cada um. E apesar do tom de autocomiseração que há em certos momentos, também se tem uma narrativa bem-humorada.
Por fim, é sempre bom ler um livro que restaura sua fé na literatura. O próprio Ricardo Lísias explica seus motivos. Literatura como uma forma de exorcismo dos demônios de cada um, de quem lê e também, muito, de quem escreve.
Colunista de Literatura. Autor do livro de contos “Virando Cachorro a Grito”(2013). Vive pela ficção e espera no futuro poder viver dela.