Esse texto é um pouco diferente; escrito a quatro mãos e com duas visões bem diferentes do filme Praia do Futuro, de Karim Aïnouz, em exibição em várias salas de cinema pelo país. O filme é emocional e toca em questões muito sensíveis; nesse campo o que mais rola são opiniões e impressões distintas.
Um filme para poucos e bons
Por Tiago Silva
Vi o filme no dia 16 de maio, no Cinema da Fundação Joaquim Nabuco, em Recife. Penso que dificilmente o filme será uma super bilheteria ou um filme de multidões. “Praia do Futuro” é um filme de coisas pequenas, de poucas ações e de muitos silêncios e, por isso mesmo, pode se tornar um pouco lento e entediante para expectadores desacostumados a narrativas desse tipo. Contudo, o que não tem de ação, tem de dramaticidade. O enredo relativamente simples, um cara que se apaixona por outro e larga tudo para viver em um país desconhecido, poderia ser mais um clichê do cinema, mas não é. E não é por várias razões.
Primeiro, os dois protagonistas vivem uma história de amor, que embora gay, poderia ser a história de qualquer casal. Acredito que a sexualidade das personagens não é o mais importante na história. O foco está na humanidade dessas personagens, seus conflitos interiores e a relação disso com os espaços em que os eventos se desenrolam. O que interessa mesmo são os embates que a pessoa, ou melhor, a personagem, que vem a ser gay, enfrenta. Donato, personagem de Wagner Moura, embora seja de Fortaleza, vive, muito antes de conhecer Konrad, uma vontade enorme de escapar do lugar em que vivia; é como se ele fosse meio deslocado, como se ocupasse um lugar que não é seu e quisesse evadir para outro.
Além disso, o filme inova muito no que diz respeito ao tipo de cena filmado. Algumas quase não contêm ação… são cenas mudas em que há apenas uma rápida movimentação – alguém ouvindo música, alguém no telhado, alguém comendo. É como se Aïnouz tentasse mostrar aqueles momentos da intimidade que são somente nossos, em que quase nada acontece e que quase ninguém valoriza, mas que é imprescindível na configuração do sujeito. O efeito disso é simplesmente fantástico. Numa das cenas mais fortes do filme, simplesmente não se diz nada. As personagens permanecem caladas, uma na porta de saída de um vagão de metrô e outra sentada. Obviamente, ninguém deixa de entender o que está acontecendo e isso, ver a ação acontecendo sem palavras, só corpo, é muito bonito! É como se Aïnouz quisesse mostrar que relações fortes surgem também do desejo que vibra no corpo de cada ser humano; o amor, ou qualquer outro sentimento, não necessariamente surge da palavra. É um tipo de não dito que está lá, que reverbera em cada acontecimento.
Destaco, ainda, o elenco e a atuação de cada um dos atores: Wagner Moura e Clemens Schick estão incríveis e Jesuíta Barbosa quebrou tudo, no bom sentido. Ele fez uma interpretação muito bonita das emoções do irmão de Donato, Ayrton. Na cena do elevador, seu corpo simplesmente explode em emoção; poucos momentos do cinema recente me tocaram tanto. Mais uma vez, não há verborragia… é um filme que evita explosões de palavras.
Logo depois da sessão da Fundação Joaquim Nabuco, houve uma espécie de bate-papo com o diretor. Basicamente, ele falou sobre a estética do filme, sobre seu processo de construção. Uma das coisas pontuadas foi a relação dos elementos do espaço com a construção do filme; na primeira parte, por exemplo, o vento, sua fluidez, é muito marcante. Há várias cenas em que o efeito do vento sobre o mar aparece. Já na segunda parte, em Berlim, o filme se torna mais ‘aquoso’ e espesso, mais denso. De certa forma, isso se conecta com a própria complexidade que a história assume na segunda metade.
Outra coisa interessante pontuada pelo diretor foi a dificuldade de se construir um filme em colaboração com uma cultura com a qual não temos um lastro comum. A coprodução brasileiro-alemã pôs em conflito dois modos de fazer muito diferentes. De um lado, o improviso do cineasta e de sua equipe. De outro, o planejamento alemão. Isso fica mais claro, por exemplo, quando a gente pensa no processo de preparação dos atores; tanto Clemens Schick quanto Jesuíta Barbosa tiveram que se virar um no mundo do outro e conviver com o espaço sem nenhum tipo de auxílio. O alemão teve que se “encontrar” em Fortaleza e o brasileiro precisou se desenrolar em Berlim.
‘Praia do Futuro’ é um filme que merece ser visto, por razões bem menos óbvias que a polêmica em torno das cenas de sexo gay.
Uma nova forma de falar de sentimentos no cinema
Por Ana Clara Monteiro
Vi a exibição no domingo, dia 18, no Cinépolis Natal Shopping (Natal-RN), e acredito que as impressões que o filme deveria causar estejam totalmente à mercê do humor ou das experiências de quem está assistindo, pois eu não me senti muito conectada. Será que se eu estivesse menos cansada, de bom humor, ou até mesmo com menos expectativas, veria com outros olhos? Enfim. Como já citado, é uma história simples, mas quando se observa a fundo (o que está na proposta do filme), percebe-se que existem vários detalhes complexos sobre decisões a serem tomadas, noção de liberdade e o próprio existencialismo de cada personagem, e esses questionamentos íntimos são muito difíceis de serem traduzidos em filme, obviamente.
Em “Praia do Futuro” houve essa tentativa através de vários momentos intimistas, silenciosos e quase que imóveis: o diretor tenta simular e nos expor a sensações que vão do instinto de sobrevivência até o mais intimista possível, mas quem consegue se comunicar com alguém que está perdido em pensamentos? Creio que o fato de não me ligar a Donato foi o que mais me frustrou, porque era a história dele e eu não sabia de nada sobre seus sentimentos.
O que também me irritou foi a duração dessas cenas contemplativas, mais longas que o necessário, e isso foi ficando cada vez mais decepcionante pela minha falta de conexão com o personagem principal. Porém, só depois que me livrei de todas as más impressões surgiu esse questionamento: como eu estou consumindo o cinema? Estamos acostumados a cenas intimistas sim, mas rápidas e óbvias, que nos entregam de mão beijada os sentimentos do personagem abordado, partindo logo pra outra cena, e pra outra, e pra outra… O Karim não faz isso, e só depois eu entendi que é completamente proposital, porque ele quer que a gente preste atenção nas pessoas e no que está acontecendo naquele momento.
O filme não só traz à tona o relacionamento gay, que é novidade no cinema brasileiro e precisa ser abordado, mas apresenta também uma nova maneira de se expor sentimentos em filmes; pode não ser do jeito que gostamos, mas é digno de atenção.
Professor de línguas e literatura inglesa, apaixonado por literatura, música, cinema e por tudo aquilo que se pode fazer a partir disso. Escuta a mesma música milhares de vezes e adora viajar. Capricorniano com ascendente em aquários, vive uma permanente confusão entre a estabilidade e a racionalidade do primeiro e a imprevisibilidade e imaginação do segundo. Em outras palavras, é um caos.