Desde a retomada do cinema nacional, a partir da segunda metade da década de 90, percebemos a predominância de produções com fórmulas batidas, a fim de atingir um público grandioso já acostumado com a linguagem cinematográfica americana. Isso se deve a um monopólio que domina as etapas de distribuição e exibição. Nesse sentido, não é de se estranhar que filmes criativos (assuntos polêmicos, finais abertos, roteiros não-lineares, dentre outras características) sejam capazes de espantar até mesmo os frequentadores do circuito alternativo. Essa foi a sensação que percebi nos espectadores de “Febre do Rato” (Cláudio Assis, 2012), um dos melhores filmes do ano segundo a Associação de Críticos do Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ).
O filme conta a história de Zizo (Irandhir Santos), um poeta anárquico que vive na periferia do Recife. Lá, publica o periódico independente que dá nome ao filme – na capital pernambucana, “febre do rato” é uma expressão popular que designa alguém que está fora de controle. Além da elaboração do jornal alternativo, escrever poemas, convocar a população a refletir e conhecer o Recife, fazer sexo com mulheres fora do padrão de beleza e viver na boemia com os amigos Pazinho (Mateus Nachtergaele) e Vanessa (Tânia Moreno – interpretando uma travesti) são atividades que fazem parte da personagem principal. Essa anarquia um tanto que “tradicional” é duramente afetada pela entrada de Eneida (Nanda Costa) na história, uma jovem que resiste às investidas do anti-herói pernambucano.
Em “Febre do Rato”, atividades categorizadas como proibidas pela nossa sociedade, tais como fumar maconha e ficar nu em lugares públicos são corriqueiras para as personagens. |
Para os admiradores do Recife, o filme já vale a pena. O diretor de fotografia acerta (e muito) ao escolher rodar a película em preto-e-branco, valorizando as pontes, o mangue, o rio e a ocupação desigual da cidade, ou seja, as palafitas que coexistem com prédios de luxo. Estes elementos são tipicamente pernambucanos. Mas o maior destaque mesmo é a desmitificação da nudez e do sexo, outros temas explorados por Cláudio Assis, seja pela beleza ou pela excentricidade das cenas. Quanto ao primeiro adjetivo, ganha destaque uma filmagem de cima de um menage à trois. Os corpos nus tornam-se inusitados e chocantes na sequencia final da produção, na qual Zizo e seus amigos tiram a roupa no centro do Recife durante a parada de 7 de setembro, como forma de divulgar os anseios anárquicos do grupo.
Portanto, é pelo fato de abordar um assunto ainda chocante à maior parte da hipócrita sociedade brasileira (incluindo o crítico que escreve essa crítica) que boa parte do público que confere “Febre do Rato” deixa a sala de cinema achando que, no mínimo, o filme é bem estranho. Na questão da anarquia, mesmo que ela receba um grande destaque, o diretor não a traduz no processo de produção. Pelo contrário, o filme parece ser bastante lapidado, o que não significa uma aproximação com os filmes cujas formas narrativas já são bastante conhecidas e mastigadas pelo grande público. “Febre do Rato” é uma homenagem à libertação criativa, constituindo uma válvula de escape ao lugar-comum e ao pensamento único que padroniza as vontades. Em “Febre do Rato”, verifica-se uma das maneiras pelas quais o cinema pode ser crítico. Sem deixar de ser arte.
Sagitariano carioca que mora em Natal. Jornalista formado pela UFRJ e UFRN. Apaixonado por cinema, praia e viagens.