Fragmentado: Shyamalan junta os cacos e atesta competência

M. Night Shyamalan ganhou os holofotes em 1999 com o aclamado O Sexto Sentido que, ao lado de Corpo Fechado (2000), Sinais (2002) e A Vila (2004), representa seu melhor momento profissional, mesmo que não sejam obras unânimes. Desde então, sua carreira desandou com dolorosos fracassos de crítica e público. Agora, o diretor e roteirista parece ter reencontrado o caminho do bom cinema em seu recente projeto.

Em Fragmentado (2017), as jovens Casey (Anya Taylor-Joy), Claire (Haley Lu Richardson) e Marcia (Jessica Sula) são mantidas em cativeiro por um homem (James McAvoy) que sofre de Transtorno Dissociativo de Identidade (TDI), contendo 23 diferentes personalidades dentro de si.

Por trás das lentes, Shyamalan cria eficiente atmosfera claustrofóbica, arrancando tudo que pode dos limitados cenários. Rodado em maior parte no esconderijo do sequestrador, longos e lentos movimentos de câmera servem ao clima de tensão. A fotografia de Mike Gioulakis aplica uns poucos planos subjetivos adotando o olhar das vítimas, escolha mais estética que conceitual.

Além disso, o filme é conduzido com a calma necessária, jamais ferindo o bom ritmo. E se suspense e tensão não são tão latentes como em obras anteriores do diretor, a intrigante história mantém a plateia interessada, mérito também do roteiro.

Patricia é uma das 23 personalidades de Kevin

A trama é contada através de três pontos de vista. No primeiro, vemos um instigante conflito psicológico entre as personalidades do sequestrador que buscam “vir à luz”. Nesse quesito, é notório como a figura de Dennis é bem construída. Líder perante os demais, ele é dono de admirável força física e orquestra tudo à espera de um grande acontecimento próximo. À medida que cresce em cena, as outras personalidades passam a usar mais cinza nos figurinos, cor predominante na vestimenta do líder.

O segundo ponto de vista em questão é o da Dra. Karen Fletcher. Acompanhando o protagonista há algum tempo, ela tem total interesse científico em seu paciente e teoriza estar diante de uma espécie de evolução humana. Vemos muito sobre a mente perturbada do personagem central através do conhecimento da doutora.

Já o terceiro vem da curiosa Casey. Fria, calculista e distante, a jovem é um ótimo contraponto ao protagonista. Enquanto as outras duas adolescentes demonstram desespero para sair do local, ela parece um inteligente animal que aguarda o momento exato para se livrar do implacável caçador.

Casey, mais uma atuação bem sucedida da promissora Anya Taylor-Joy

Estruturalmente, Fragmentado apresenta os dois atos iniciais com sobriedade. O dilema da produção reside no plot twist que direciona ao arco final, fazendo escolhas que podem desagradar boa parte da audiência. Com a simples cena final, o filme consegue ancorar tudo de forma coerente. Porém, para que isso faça sentido, o espectador precisa ter um conhecimento prévio do trabalho do cineasta, o que considero perigoso: se avisado, tiraria o fator surpresa do projeto. E se ignorado, como foi, afeta a compreensão dos que não viram os filmes anteriores do indiano.

O eficiente o roteiro traz outros elementos questionáveis. Destacam-se o exagerado número de personalidades, apenas 4 das 23 são construídas com qualidade; a cena em que as meninas são sequestradas, onde Casey tinha claras condições de fugir e acaba reagindo lentamente, favorecendo o suspense por conveniência; e os flashbacks que pouco acrescentam à trama e criam forçado vínculo entre predador e presa.

O elenco é muito competente. Betty Buckley consegue passar carisma na pele da psiquiatra Fletcher. Taylor-Joy, que já tinha mostrado talento em A Bruxa (2015), entrega mais uma boa interpretação. Entretanto, o show fica a cargo de McAvoy. Além do já citado Dennis, o escocês dá vida a Patrícia, mulher serena e influente; Hedwig, um garoto de 9 anos; e Barry, um aspirante a estilista.

Dra. Fletcher (Betty Buckley) é a terapeuta das personalidades de Kevin

É verdade que o ator foge do minimalismo aqui, usando características chamativas como o TOC de Dennis, a língua presa de Hedwig ou o homossexualidade de Barry. Porém, seria praticamente impossível criar detalhes para cada vertente de seu papel. O astro ainda tem a preocupação de dar algumas nuances e fornecer ótimos trabalhos físicos e vocais. Cada uma das versões é bem definida e de fácil identificação, numa excelente demonstração de talento.

Fragmentado traz alguns tropeços, mas nada que provoque danos profundos ao produto final. Claustrofóbico e intrigante, o filme é um passo firme na retomada da carreira de Shyamalan, fôlego importante na hora certa. Um cineasta em sintonia com sua própria fórmula!

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João Victor Wanderley
Radialista por formação e jornalista em formação. Minha paixão pelo cinema me trouxe ao Chaplin; minha loucura, ao Movietrolla. Qualquer coisa, a culpa é d’O Chaplin… E “A Origem” é o maior filme de todos!
João Victor Wanderley

João Victor Wanderley

Radialista por formação e jornalista em formação. Minha paixão pelo cinema me trouxe ao Chaplin; minha loucura, ao Movietrolla. Qualquer coisa, a culpa é d'O Chaplin... E "A Origem" é o maior filme de todos!

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