O diretor Steven Spielberg assumiu uma espinhosa tarefa: fazer a cinebiografia de um dos presidentes mais respeitados e amados de seu país. Após dois projetos nem tão bem sucedidos: “Cavalo de Guerra” e “TinTim – E O Segredo de Licorne”, eu fiquei receosa pra saber o que esperar do cineasta e pensei cá com meus botões: “Será que o velho Spielberg perdeu o jeito da coisa?”. A resposta é um não bem sonoro, o que se vê no longa-metragem é o trabalho de um diretor coeso, em sua melhor forma, com tudo em sua medida certa. Resultado: Lincoln é uma das melhores e mais bem feitas cinebiografias que já vi.
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Lincoln (Daniel Day-Lewis) em seu gabinete discutindo uma maneira de aprovar a 13ª emenda. |
De antemão vou logo avisando aos leitores que não se trata de uma biografia cronológica, não temos aqui o pequeno Abraham Lincoln crescendo nos campos de plantação de sua família em Kentucky. Nada de papai e mamãe Lincoln passando seus ensinamentos batistas ao garoto, nada do início da carreira política em Illinois, muito menos nenhum relato de caça a vampiros ou coisa do gênero. O roteiro é baseado na biografia “Team of Rivals: The Political Genius of Abraham Lincoln” da escritora e historiadora, vencedora do prêmio Pulitzer, Doris Kearns Goodwin.
O recorte histórico está centrado em 1865, dois meses após a reeleição de Lincoln e o pior período da Guerra da Secessão. Sob o contexto de manutenção da escravidão nos EUA, 11 estados sulistas confederados, lutavam contra os Estados Unidos (formados por estados do norte do país) com finalidades separatistas. O que estava em jogo? Os interesses econômicos de duas regiões e a divisão de um país. A economia do sul vivia da agro-exportação que tinha como base a mão de obra escrava (de origem africana). Em contrapartida, os estados do norte necessitavam de crescimento do mercado interno e do estabelecimento de barreiras protecionistas, estes desejavam o fim da escravidão.
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Mary (Sally Fields) e Lincoln (Daniel Day-Lewis) no balcão do Teatro Ford |
Diferente dos demais filmes que tratam da Guerra da Secessão como: E o Vento Levou; Três Homens em Conflito; Tempo de Glória e Cold Mountain, o foco não está nos romances ou nos campos de batalha, mas sim nos gabinetes, nos tramites políticos por trás da guerra e mais especificamente na luta de um presidente para implantar a 13ª emenda na constituição norte-americana, que põe fim a escravidão em terras ianques. O primeiro presidente republicano dos EUA tem um árduo trabalho de tentar convencer a câmara dos deputados federais em aceitar a emenda e terminar a guerra que já se arrasta para o seu quarto ano.
Daniel-Day-Lewis, que em um primeiro momento, recusou o papel, acabou cedendo a insistência de Spielberg. Assim como o diretor, eu também não vejo outra pessoa senão Day-Lewis para encarnar o idolatrado presidente. Vamos tirar o chapéu para equipe de maquiagem que deixou o ator idêntico ao chefe de estado americano. A produção trabalhou confortavelmente em cima do orçamento de 65 milhões de dólares, caprichando em cada detalhe do figurino, dos cenários, sem cometer anacronismos.
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Deputado Thaddeus Stevens (Tommy Lee Jones) em defesa da igualdade entre brancos e negros |
No tempo em que as pessoas acreditavam em seus lideres, Abraham Lincoln era admirado, respeitado e amado pelo seu povo. Logo no início do filme há uma cena que comprova isso: vemos o presidente em um campo de batalha conversando com seus soldados (brancos e negros) que estavam ali por acreditar no ideal de justiça e igualdade entre todos os seres humanos, os soldados sabiam decorado o discurso de Lincoln. Não só nos fronts, mas nos gabinetes também, o retrato do presidente é de um homem convicto de seus ideais, de pulso firme e coragem para ir além das convenções impostas por um colonialismo ou por interesses políticos escusos.
Daniel Day-Lewis está, como sempre, excelente, o britânico deixou seu sotaque de lado, assumiu a cartola e nacionalidade de Lincoln. Detentor de duas estatuetas do Oscar (Meu Pé Esquerdo e Sangue Negro), é o meu favorito à premiação este ano. Sally Fields, é Mary Todd Lincoln, esposa preocupada e frágil do presidente, está muito bem e faz valer as cenas em que aparece. James Spader, que depois de “Stargate”, nunca mais tinha o visto em uma produção bacana, faz W.N. Bilbo, contratado para oferecer propina aos deputados passarem a emenda, está em ótima forma na película.
Tommy Lee Jones, é aquele ator coadjuvante que brilha como poucos, no longa ele interpreta o deputado Thaddeus Stevens, o maior defensor do fim da escravidão que não tem papas na língua em seus discursos a favor da aprovação da 13ª emenda. Jones como poucos atores tem um magnetismo, uma presença de cena e o seu talento vai muito além de “M.I.B – Homens de Preto”.
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Chefe da União Lincoln em visita as tropas |
Por fim, Steven Spielberg voltando a ser o Steven Spielberg contador de boas histórias e um exímio realizador de grandes produções. “Lincoln” é um filme americano, sobre um presidente americano, feito por americanos, mas sua mensagem cruza todas as fronteiras, nos faz refletir sobre ideais de igualdade e justiça e pôr a mão na consciência para mirar a nossa hipocrisia e o racismo velado em nosso país.
Uma míope quase sempre muito atrasada, cinéfila por opção, musicista fracassada e cronista das pequenas idiotices da vida. Pra sustentar suas divagações é jornalista, roteirista e fotógrafa.
Um bom filme pra ser indicado ao Oscar esse Lincoln, mas a exceção da genialidade extraordinária de Abraham Lincoln, é um filme, se muito, razoável.
É o que penso.