Já retratado em obras como Gilbert Grape – Aprendiz de Sonhador (1993), A Lenda do Pianista do Mar (1998) e Rain Man (1988), o autismo voltou aos cinemas de forma inusitada. Porém, os inúmeros tropeços narrativos transformam um bom potencial num filme problemático. Em O Contador (2016), Ben Affleck é Christian Wolff, um autista altamente funcional que trabalha fazendo contabilidade, também, para criminosos. Após virar alvo de assassinos, Christian precisa descobrir quem o quer morto enquanto o Governo o caça pelas suas relações profissionais.
Mesmo com alguns interessantes acertos técnicos, a produção peca na construção da trama. Escrito por Bill Dubuque, o roteiro abandona elementos importantes inseridos por ele próprio, como a condição neurológica do protagonista. Logo no início, vemos um jovem com um transtorno elevado, chegando a se debater por ter perdido uma simples peça de quebra-cabeça. Já em sua vida adulta, o vemos com uma postura completamente modificada cuja a condição diferenciada traz discretos indícios. Além de altamente funcional, o contador também é bastante sociável, perito em armas e em artes marciais.
O problema em questão não é vermos um autista superar suas limitações com tanto louvor, mas sugerir que a evolução se deu através da rigidez de um pai disciplinador, que moldou o filho à força e sem qualquer acompanhamento especializado, e, nos minutos finais da projeção, jogar indícios de uma superficial interferência externa. Ademais, o transtorno não tem qualquer valor narrativo na vida adulta de Christian. Como jamais chega a ser um auxílio ou um obstáculo dentro da história, essa característica poderia ser facilmente arrancada do enredo que não causaria impacto nenhum.

Outro arco que poderia ser removido sem qualquer sequela é o do Departamento do Tesouro. Na caça pelo contador dos criminosos, Ray King (J.K. Simmons) recruta Marybeth Medina (Cynthia Addai-Robinson) para conduzir a investigação, que segue em paralelo à trama principal e jamais a encontra. As descobertas de Marybeth perdem peso por serem apenas repetições de informações já ditas ou inúteis. O arco finaliza com um monólogo expositivo que pouco acrescenta.

A montagem de Richard Pearson, dos eficientes A Supremacia Bourne (2004) e 007 – Quantum of Solace (2008), é equivocada. Os flashbacks parecem entrar aleatoriamente, sem qualquer ligação com os fatos que os antecedem. A inserção de outros momentos fora de ordem cronológica também é desnecessária, emulando um quebra-cabeças que acaba enfraquecido pela exposição dos diálogos. O trabalho de Pearson acerta apenas nas sequências de ação, que são sempre inteligíveis e ágeis.
Positivamente, o diretor de fotografia Seamus McGarvey consegue bons enquadramentos nas bem conduzidas sequências de luta, além de outros momentos inspirados, como na cena onde Christian é emoldurado por uma pequena janela no meio de uma vasta parede, refletindo o universo particular em que vive.
Já Ben Affleck acerta ao insistir na inexpressividade de seu personagem. Dentro da lógica questionável do filme, é a concepção correta do astro que nos segura bem até os créditos finais. O resto do elenco é superficial. Simmons parece estar no piloto automático, Jon Bernthal oferece certo carisma como Brax, numa persona cada vez mais comum em sua carreira, e a competente Anna Kendrick é desperdiçada como Dana que, embora seja importante na história, parece ter sido criada de qualquer forma.

Com uma reviravolta óbvia e outra completamente descabida, O Contador é um curioso produto dirigido por Gavin O’Connor. Destaca-se em alguns pontos técnicos e ao entregar um trabalho simpático, mas é frágil justamente em sua estrutura. Se não fossem as competentes sequências de ação e, por incrível que pareça, o brilho de Affleck, o filme seria um desastre completo.
Radialista por formação e jornalista em formação. Minha paixão pelo cinema me trouxe ao Chaplin; minha loucura, ao Movietrolla. Qualquer coisa, a culpa é d’O Chaplin… E “A Origem” é o maior filme de todos!