“Para Libo”

É com essa dedicatória que o cineasta Alfonso Cuarón finaliza o trabalho mais pessoal de sua carreira. Acostumado a lançar olhares densos para os dramas de suas personagens, o mexicano busca inspiração em suas memórias mais íntimas e entrega uma lindíssima declaração de Amor traduzida em Cinema. Roma (2018) se passa no México, no início dos anos 1970, e acompanha um ano na vida de uma família de classe média sob a ótica de uma das empregadas.

Não se trata aqui de uma obra cheia de reviravoltas ou grandes acontecimentos, mas de uma ode ao cotidiano. Cuarón recria a pessoa que o criou (Libo) através de Cleo (Yalitza Aparicio), uma mulher humilde que vive em prol das necessidades de quem a emprega. O roteiro é de um brilhantismo invejável ao conseguir construir suas diferenciadas camadas com uma sutileza poética.

“Roma” já está disponível na Netflix.

No âmbito familiar, Cleo é quem faz a casa funcionar ao tomar conta de tudo. Embora as crianças a tratem como uma parente, demonstrando afeto e respeito, são os pequenos gestos que a colocam “de volta à sua realidade”, como quando atende o telefone e, antes de passá-lo à patroa, limpa-o com o avental; quando é levada nas viagens, mas sempre para trabalhar; ou quando é levada às pressas ao hospital e a mãe de sua patroa sequer consegue dizer o nome completo da paciente.

Por outro lado, a intenção aqui jamais é de julgamento. Se as situações remetem diretamente às demonstradas no brasileiro Que Horas Ela Volta? (2015), a abordagem se diferencia por ser mais fria e distante, como quem apenas relata. Proposta reforçada pela própria Cleo, que jamais esboça qualquer insatisfação.

Outra característica feliz do roteiro é a de nos transmitir apenas as informações que chegam à protagonista. É assim com a difícil relação conjugal vivida por Sofia (Marina de Tavira) e Antonio (Fernando Grediaga), pontuada eventualmente quando a empregada passa perto da patroa e a ouvimos comentar algo; com a conturbada situação política, retratada através de protestos pela rua; e com a diferença social mostrada no contraste entre a casa em que trabalha e o local onde vai procurar Fermín (Jorge Antonio Guerrero).

Apesar do nome, ‘Roma’ é ambientado no México dos anos 1970.

A direção de Cuarón é construída frame a frame para ser um projeto completamente imersivo. Da vinheta da Netflix até boa parte dos créditos iniciais, o som é quase inexistente. Recurso que cria a atmosfera que permeia grande parte da obra. Os movimentos de câmera são suaves e sem pressa, auxiliando na atmosfera contemplativa.

Eles também ajudam a delimitar a participação de Cleo na dinâmica familiar. Logo no início, a câmera sobe a escada, transita pelo andar superior enquanto a protagonista está trabalhando e a acompanha descendo para continuar o serviço embaixo. A movimentação é repetida posteriormente com precisão, nos lembrando que, apesar das mudanças, cada um retornou para o local que lhe pertence.

O design de som é limpo e claro, utilizado moderadamente para contribuir com a narrativa. Sabe quando respeitar o silêncio e quando precisa incomodar. A fotografia é extremamente elegante e eficiente, oferecendo momentos de memorável beleza estética. É como se víssemos um álbum onde as lembranças são retratos com elementos simetricamente dispostos no quadro, como quando Antonio se despede da família para uma viagem ou quando Sofia, embriagada, estaciona o carro.

Três momentos específicos da fotografia me marcaram bastante: os créditos iniciais, com um longo plano do chão que, ao ser molhado, mostra o reflexo de uma janela no teto; a sequência sem cortes na loja, onde a ação começa no interior, passa para o lado de fora e retorna para o interior, num instante de tensão total; e a sequência da praia, onde um movimento lateral acompanha Cleo sem mostrar completamente o que está acontecendo, gerando uma apreensão incrível.

Aliás, essa passagem também serve para coroar a tocante atuação da protagonista Yalitza Aparicio. Ela, que jamais havia atuado antes, reage com tanta verdade que emociona. A personagem internaliza seus sofrimentos com tanta ternura que, por vezes, senti vontade de abraçá-la e de tentar confortá-la. A cena da praia é uma catarse eficiente para Cleo, que, depois de tanto calar, finalmente externa o que está sentido, e é de partir o coração.

A força dessa mulher é transcendental, lindamente ilustrada no momento em que assiste a uma aula de artes marciais e, despretensiosamente, executa com perfeição um movimento que é repetido com igual eficácia apenas pelo instrutor. Mais uma vez, as sutilezas pontuando imageticamente, sem exposições gratuitas, elementos que constroem a narrativa.

Cuarón acerta demais ao escalar uma atriz inexperiente e tão expressiva, complemento à sua condução que mantém o elenco às cegas o máximo possível, para tirar suas reações mais sinceras. Não só alcança um resultado magnifico com constrói uma protagonista ímpar.

Escrito, produzido, dirigido, fotografado e montado pelo próprio Cuarón, Roma (que também é o nome do bairro onde o cineasta cresceu) é uma viagem íntima e contemplativa. Uma homenagem às mulheres de sua vida, construídas com uma identificação universalizada através da força e do caráter que fogem aos homens com quem se relacionam. Uma declaração a todas as Libos e Cleos espalhadas pelo mundo!

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João Victor Wanderley
Radialista por formação e jornalista em formação. Minha paixão pelo cinema me trouxe ao Chaplin; minha loucura, ao Movietrolla. Qualquer coisa, a culpa é d’O Chaplin… E “A Origem” é o maior filme de todos!
João Victor Wanderley

João Victor Wanderley

Radialista por formação e jornalista em formação. Minha paixão pelo cinema me trouxe ao Chaplin; minha loucura, ao Movietrolla. Qualquer coisa, a culpa é d'O Chaplin... E "A Origem" é o maior filme de todos!

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