Um ano de desafios, dilemas e perspectivas no cenário cultural de Campina Grande

Cidade cosmopolita e universitária, Campina Grande é sinônimo de duas coisas para turistas e aventureiros: polo tecnológico e São João. Enquanto a produção tecnológica orgulha os citadinos – mesmo que dificilmente tenhamos acesso real ao que é produzido nos laboratórios universitários que logo são exportados para o Vale do Silício – o São João se torna o ímã que une gregos e troianos. Enquanto o resto do Brasil celebra o ano em antes e depois do carnaval, aqui os festejos juninos são os divisores de água.

Mas nem só de pão vive o homem. Essa cultura, mesmo que pareça predominante aos olhos do outro, atualmente não passa de um mero detalhe na paisagem cultural da cidade. Atrelada a interesses mercadológicos e industriais, atrações que nada incorporam aos verdadeiros elementos rurais e juninos tornam-se por vezes o centro de acaloradas discussões intelectuais e metafísicas acerca dos rumos e propósitos do que seria o verdadeiro símbolo do Maior São João do Mundo. E este é só um dos vários problemas e desafios que hoje encontramos no nosso panorama cultural. Ausência de diálogos dos poderes públicos com os artistas, favorecimento financeiro em detrimento de outros, o Fundo Municipal de Cultura e a falta de políticas públicas são alguns dos desafios e dilemas que o cenário cultural de Campina Grande tem pela frente.

Apresentação de Banda de Pífano na praça da cidade, por Kalina Aires
Apresentação de Banda de Pífano na praça da cidade, por Kalina Aires

DA LAMA AO CAOS

Finalmente independente e autônoma, desvinculada da secretaria de Esportes e Educação, a pasta de Cultura foi criada há menos de 3 anos. Desde 2012 a pasta é administrada pela ex-reitora da UEPB, Marlene Alves. Conhecida pela sua coragem e determinação em levar adiante ideias inovadoras, foi responsável durante a sua gestão na universidade em fomentar a atividade audiovisual na cidade. Exemplos dessas iniciativas são o festival Comunicurtas, os cursos de extensão para Produção de Documentários e Aula de Vídeo para Atores, possibilitando, também, um intercâmbio de atores locais para escolas de artes cênicas no Rio de Janeiro, totalmente financiado pela UEPB.

Nesses três anos de pasta, uma coisa não mudou na troca de governo: a secretaria de cultura continua e continuará sem orçamento definido. Mesmo assim a pasta continua apoiando e criando laços com outras secretarias para a execução de projetos. Enquanto isso, o prefeito Romero Rodrigues segue de ombros dados às causas emergenciais do segmento cultural. Recentemente a secretária Marlene Alves virou alvo de críticas ante a classe artística que exige a posse do Conselho Municipal de Cultura. “A secretaria de Cultura parece ter ficado surda e muda para esse fato, aguçando assim, nossa indignação com o descaso e abandono em que nos encontramos como atores e com andamento da cultura campinense”, desabafou a atriz Irene Ponciano, eleita no Conselho para representar o segmento teatral. Procurado pela reportagem, a secretária não respondeu até o momento as perguntas enviadas por e-mail.

Unidos em torno de um propósito, os artistas exigem há meses a posse do Conselho de Cultura Municipal. Com diretoria já definida, ainda estão a ver navios. Uma das instâncias para a implementação do Plano Nacional de Cultura, o conselho teria o objetivo de propor e discutir políticas públicas para o setor, que deve ser formado por representantes da sociedade civil e pública. “A importância do Conselho reside no fato dele ser o principal interlocutor dos artistas, sua principal voz”, explica Alvaro Fernandes, um dos mentores da ideia da criação do conselho. “Ele deverá ser um conselho provocador, já que as propostas de implantação de políticas públicas dependerão de ricas discussões travadas no âmbito desse Conselho”. Até o momento, a falta de vontade política do prefeito impediu a sua homologação e posse. A mesma falta de vontade que há mais de 10 anos mantém inativo o Fundo Municipal de Incentivo a Cultura.

Única unanimidade no batalhador cenário cultural de Campina Grande, o Sesc Centro tem em si a vantagem dos impostos do comércio. Não é incomum ouvir pelos populares que ele funciona como uma Secretaria de Cultura, mas ao contrário da mesma, não enfrenta dificuldades financeiras. Com isto é possível descentralizar, democratizar e diversificar o calendário cultural da cidade com atividades durante todo o ano, capacitando artistas e públicos que frequentam o espaço, oferecendo oficinas e atividades artísticas. Coordenador de cultura da instituição, Alvaro Fernandes – que a cada nova eleição municipal é sempre cotado para ocupar o cargo de secretário de cultura – adianta que “como o Sesc sempre trabalhou em torno do diferencial, sempre absorvendo a produção cultural que está à margem do processo da mídia”, explica o gestor. “O que se pode esperar para 2014 é ampliação dessas ações focadas na diversidade e na pluralidade cultural”.

Público aprecia apresentação ao vivo de música, por Kalina Aires
Público aprecia apresentação ao vivo de música, por Kalina Aires

O cinema segue com os mesmo desafios e perspectivas. A batalha no Cine São José volta a ganhar espaço na discussão. Ocupado em 2010 por estudantes, produtores culturais e movimentos sociais, foi garantido pelo Secretário Estadual de Cultura Chico César o desenvolvimento de um projeto para o cinema. Orçado em R$ 2,5 milhões, será agora um Cine-Teatro, com capacidade para 150 pessoas, e espaço para apresentações também de teatro, dança, circo, cultura popular e lançamentos de livros. “Além de servir como um espaço de convivências para artistas, intelectuais e o povo de Campina Grande e região”, informou Lau Siqueira, presidente da Funesc. Previsto para ser inaugurado ainda esse semestre, as expectativas são grandes em torno do espaço. Dentro da cena audiovisual, o boom da cena local esfriou. Em um ano marcado por produções fracas e inexpressivas, restou como único destaque louvável “Cancha – Antigamente era Mais Moderno”, do cineasta Luciano Mariz. De novidades, somente o já propagado curta de Jaime Guimarães (colaborador d’O Chaplin), A Alma das Ruas, a ser realizado em parceria com o Canal Futura; e a misteriosa empreitada na TV paga do trio Fabiano Raposo, Jhesus Tribuzi e Ramon Porto. Aguardemos…

Patrimônio cultural de Campina Grande, o Teatro Municipal Severino Cabral comemorou seus 50 anos recentemente. Sob a direção de Aluizio Guimarães houve mudanças significativas em detrimento à classe artistica local, entre elas gratuidade da pauta, incentivando grupos independentes a apresentarem seus espetáculos na casa. Medida esta que vai continuar a acontecer. Entretanto ainda enfrente problemas estruturais. Após uma malfadada e inescrupulosa reforma que durou dois anos, a outrora excelente acústica do teatro foi para o espaço, e as cadeiras precisam semanalmente serem lubrificadas por causa do range-range insuportável que causa, atrapalhando o espetáculo e o espectador.

Um coletivo autônomo e independente vem solidificando aos poucos o desejo antigo dos artistas plásticos da cidade. Capitaneados por Flaw Mendes, Luis Barroso, Petrus Vinicius e Wellington Medeiros,  o que começou de forma simples num fórum das redes sociais, ganhou forças no mundo real, aonde são expostos ao ar livre periodicamente no anfiteatro do Açude Novo obras de diversos artistas independentes locais. “Inicialmente, pensamos em criar um espaço para dialogar, trocar ideias e principalmente conhecermo-nos”, explica Flaw Mendes. “Cada um atuava isoladamente, sem muitos recursos e por conta disso acabava gerando uma produção medíocre”. A iniciativa deu certo. O Museu de Artes Assis Chateaubriand (MAAC) viu a proposta e convidou o grupo para desenvolver um projeto que torne o espaço do Museu um ambiente mais aberto com ações concretas no segmento. Para os próximos meses estão confirmados cursos e oficinas de arte contemporânea e mais a frente os artistas contam com apoio institucional e financeiro do MAAC para por em prática e escoar para a sociedade a oculta produção de artes plásticas que muitas vezes ficam longe do olhar do público.

Na esfera privada, dois tradicionais eventos do calendário urbano também sofrem com a aparente apatia estatal. Guiado por decisões equivocadas no passado e minado/sabotado durante os oito anos da gestão do ex-prefeito em detrimento do ranço intolerante dos eventos neo-petencostais, o Encontro da Nova Consciência perdeu muito de sua importância nacional como evento ecumênico, mas conseguiu manter-se vivo, em escala menor do que um dia já foi. Ligados ao grupo político dos Cunha Lima e simpáticos à atual gestão de Romero Rodrigues, ainda não foi divulgado se o evento contará com forte apoio estatal e se retornará a sua velha casa, o Teatro Municipal Severino Cabral. Uma reunião marcada para esta semana determinará os rumos do ENC deste ano.

Por outro lado, o mais antigo e outrora prestigiado evento de artes, o Festival de Inverno, continua sua guerra particular.  Nome importante no cenário local, a professora Eneida Maracajá continua a frente do evento, junto com sua filha Myrna, mesmo criticada nos últimos anos pela má-administração do Festival. O cidadão campinense amante das artes sofre ao ver as dificuldades do evento. Não é incomum ouvir os mais velhos lembrarem com nostalgia os bons tempos (que já chegou a ocupar um mês inteiro no calendário e hoje não passa de uma semana) e lamentarem o descaso dos poderes públicos. Para comparar em termos de orçamento, o Festival de Inverno de Garanhuns recebe em torno de R$ 12 milhões do governo do estado, enquanto o nosso, com 38 anos de história, contribui com meros R$ 300 mil do estado, como revelou o site Grande Campina.

A CULTURA E O ESTADO

Costuma-se criticar a forte dependência estatal da cultura. Mas em certas regiões do país, aonde as parcas condições de desenvolvimento autônomo são praticamente nulas, é necessária a mão-pesada do estado para evitar sua extinção. Cultura não é mercadoria. Não deve ser dosado pelos mesmos parâmetros das leis de mercado. A depender da iniciativa privada, as discrepâncias e concentrações com artistas consagrados continuariam a acontecer, vide o fracasso retumbante da Lei Rouanet em democratizar e descentralizar suas ações. Artistas independentes e experimentais de menor relevância não estariam sequer em atividade, como é o caso do que pode acontecer aqui sem esse apoio.

Votação na III Conferência Nacional de Cultura, por Hipolito Lucena
Votação na III Conferência Nacional de Cultura, por Hipolito Lucena

Preocupados com essa perspectiva, em dezembro de 2013 o Ministério da Cultura realizou a III Conferência Nacional de Cultura em Brasília. Artistas e produtores culturais de todo o Brasil foram convocados em conferencias estaduais para representarem a classe artística de sua região. Da Paraíba, delegações de João Pessoa, Campina Grande, Sousa e Patos partiram em direção à Brasília. Professor da UEPB, Hipólito Lucena fez parte da comitiva e nos relatou que duas propostas foram unânimes na Conferência: “a aprovação e implantação do Sistema Nacional de Cultura, o que determina a participação do governo e da sociedade civil, através dos conselhos municipal de cultura, deliberando as políticas públicas para o setor, e a outra proposta refere-se a aprovação da PEC 150”. Ferramenta que elevaria para 2% o percentual do orçamento da União destinado a Cultura, a aprovação da PEC 150 fixaria constitucionalmente este investimento em cultura para governos dos Estados e do Distrito Federal em 1,5% e para os municípios em 1%. Hoje, essa vinculação mínima não existe.

Localmente, o governo do estado já plantou a semente com o Curso de Gestão Cultural, que neste início de 2014 formará sua primeira turma, com mais de 100 alunos espalhados por todo o estado. Enquanto isso o governo federal dá os primeiros passos para implementar o Sistema Nacional de Cultura e o ProCultura como meio alternativo para substituir a falida Lei Rouanet. “Acredito que só teremos mudanças significativas com organização e ação política do setor”, aconselha Hipólito. “Um exemplo temos no movimento das Quadrilhas Juninas, que estão a frente das demais categorias, em critério de organização”. Recentemente a Associação de Quadrilhas Juninas elaborou um documento orientando seus filiados a não aceitarem o convite de programas de TV que não atendam as devidas melhoras de condições e valorização dos quadrilheiros. “Nossos quadrilheiros terão que ter direito a água, a um lanche, a um bom transporte, a uma mesa para os coordenadores e a divulgação da junina. Caso contrário não contem com eles, ou paguem mais caro para se trazer (quadrilhas) juninas de fora da cidade”, exigiu a associação em comunicado veiculado nas redes sociais. Então, que venha 2014.

Por Alisson Callado, especial para o blog O CHAPLIN

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