Como histórias são contadas no cinema? 

Nos textos anteriores analisei principalmente o construção do estilo fílmico  comandada pelos diretores com auxílio do seus diretores de fotografia e diretores de  arte, dentre outros profissionais dentro da produção de um filme. Roteiristas são também uma parte essencial da construção de um filme, dificilmente uma produção em Hollywood iria começar sem um roteiro. Todavia, não iremos aqui analisar roteiros, mas sim a narrativa

Explico, ao assistirmos a um filme estamos recebendo padrões visuais e sonoros criados pelo diretor, não mera decoração em cima de um roteiro, mas a própria carne de uma obra. Cada ação e diálogo descrito no roteiro está sendo nos apresentado da maneira escolhida pelo diretor. Seja a posição dos atores, o cenário, a iluminação, a escolha de lente. E cada decisão desta irá impactar na nossa experiência fílmica. 

 Nesse sentido para analisar um roteiro propriamente dito deveríamos lê-lo, o que não faremos aqui. Sem dúvidas a leitura traria algumas respostas de como histórias são contadas no cinema, poderíamos perceber as diferenças entre contar uma história no cinema e na literatura ou teatro, mas não será o caminho tomado nessa abordagem. 

Buscamos uma resposta mais ampla da narrativa cinematográfica, então, a análise do estilo deve ser feita, pois a narrativa está em cada decisão estilística do diretor, e é somente através do estilo que temos acesso à história ou temáticas. E como essa história é construída no cinema? Através do enredo e dos padrões de estilo. 

História x enredo

Em uma história, nem todos os acontecimentos são contados. Apenas alguns selecionados, eles formam o enredo, é o que vemos na tela. Através desses pedaços da história, o espectador por meio de inferência cria na sua mente a história completa. Em Pulp Fiction, por exemplo, a cena na qual Vincent e Jules conversam no carro sobre a viagem de Vincent a Europa. Nós jamais vimos tais acontecimentos, eles fazem parte da história, mas não são encenados, não fazem parte do enredo. Ou algo mais diretamente relacionado a trama do filme, não vemos nenhuma interação entre Brett e Marsellus Wallace, mas sabemos que houve um desentendimento entre eles, faz parte da história, por isso Jules e Vincent devem recuperar a maleta e dá um fim em Brett e seus comparsas, vemos no enredo. 

Essa inferência entre os acontecimentos mostrados pelo enredo são conectados geralmente numa lógica de causa e efeito. Cenas levantam perguntas que outras cenas darão a resposta. John Wick é espancado e tem o cachorro morto, causa. Ele parte em busca de vingança, efeito. Ele conseguirá se vingar? Pergunta gerada. Esperamos que a resposta seja dada, provavelmente ao final do filme. Outras perguntas podem ser respondidas mas imediatamente. A casa de John é invadida por assassinos, ele sobreviverá? Saberemos a resposta logo em seguida, com uma incrível cena de ação, diga-se de passagem.

Muitas causas da história de Wick são omitidas pelo enredo, não sabemos tudo sobre o personagem, o que aconteceu antes dele se aposentar. O filme usa isso muito bem na construção do mito acerca dele, do Baba Yaga. Talvez você não esperava John Wick numa discussão de narrativa, mas voltemos ao Tarantino.

Pulp Fiction é um primor na relação enredo e história. Ele omite diversas causas, já colocando os personagens em plena ação, o efeito. Os assaltos passados de Pumpkin e Honey Bunny, a massagem nos pés de Mia por Tony Rock Horror, a fama de Mr.Wolf, que apenas por seu nome já alegram Jules, jamais vemos tais acontecimentos, mas afetam a construção da história pelo público. A própria motivação de Butch em recuperar o relógio é com base numa história do seu pai que nunca vemos, aliás uma história contada para ele quando criança. Tarantino nos navega por um mundo riquíssimo, mas selecionando apenas certos eventos da história para criar uma experiência única, não um desenrolar básico de causa e efeito. E eu nem falei da cronologia fora de ordem, que irá brincar mais ainda com as relações de causa e efeito. 

A Narração

Quando eu falei que Tarantino nos navega, eu me referir ao processo de narração. É o processo que vai guiar o espectador através do enredo e do estilo a construir a história. É o guia momento a momento, do desenrolar da história. A narração de Pulp Fiction inicia o filme no meio de uma conversa, Pumpkin diz pra Honey Bunny: “Esqueça, é muito arriscado”, é a primeira coisa que escutamos no filme. É a primeira parada do guia do filme pelo mundo da história. Depois decide congelar a cena assim que eles anunciam o assalto (estilo), para depois dos créditos irmos para o carro de Jules e Vincent. A narração é como é organizada a informação dada ao público, e de que forma, onde entra o estilo. A história é um prédio, não podemos ver todo dentro dele de uma vez só,  a narração será o guia que nos levará pelo prédio, selecionando o que devemos ver e qual ordem; aqui podemos invocar a montagem, como aspecto do estilo que lidará com essa questão; e como ver, invocamos todos os outros elementos do estilo, mise-en-scène, cinematografia e som. 

Na primeira vez que a narração do filme nos mostra Butch ele está escutando alguém fora de quadro, decisão estilística. Num corte para um novo plano podemos ver agora essa pessoa de costas, que saberemos que é Marsellus Wallace, mas até o final da cena não veremos o seu rosto. É como através do estilo Tarantino decidiu mostrar os eventos do enredo. A decisão estilísticas impacta na informação que o público tem, sendo assim, no processo de construção da história através da narração. 

Por falar em informação, a narração se divide em dois tipos quanto a esse aspecto: restrita e irrestrita. Na restrita, nós o público só temos a mesma informação que os  personagens têm, na irrestrita temos mais informação que os personagens. Ambos exemplos dados, Pulp Fiction e John Wick, são irrestritos, embora em determinadas cena possam empregar a narração restrita. Mas como usar isso para afetar o público? 

Podemos ver isso em ação na cena de abertura de Bastardos Inglórios. Começamos a cena do ponto de vista do fazendeiro, então chega Hans Landa e o interrogatório terá início. Estamos assistindo a cena com informações que os dois tem acesso, não sabemos mais que eles. Mas em determinado momento, através de um movimento de câmera para baixo (estilo) nos é revelado uma família judia escondida debaixo do chão. Agora temos mais informação que Landa, ou achamos que temos. A cena levanta a seguinte pergunta: será que Landa os descobrirá? Dentro da cena temos uma mudança de como a informação nos é dada, uma mudança da narração. Ou seja, a mudança causa suspense pelo o que vai acontecer. 

Ainda na cena, Landa vai revelar que já sabia da família judia, por isso escolheu falar em inglês, nós não tínhamos todas as informações, Landa sempre teve mais que todos personagens e público. Tarantino muda o fluxo de informação da cena conduzindo o público a diversas reações ao decorrer. 

Um acontecimento do enredo também pode causar curiosidade, sobre o que aconteceu antes para levar a aquele ponto. A cena inicial de Kill Bill Vol.I é um exemplo. O que levou Bill a fazer aquilo com a Noiva? Atirar na cabeça dela? Na verdade, nesse momento nem sabemos quem é aquela mulher, mas o cinema tem um recurso que a literatura não possui, o uso de atores e atrizes famosos, sabemos que essa personagem será importante no filme pela Uma Thurman. Como colocado, a narração vai construindo momento a momento a história com o público. Se essa cena tivesse sido colocada em outro lugar pela montagem, teríamos uma construção diferente da história de Kill Bill.

Estrutura narrativa

Existem linhas gerais que orientam a narração, onde cada acontecimento do enredo deve ser posto. Voltando ao exemplo de Kill Bill, se espera que a Noiva só consiga a sua vingança ao final do filme. Que essa pergunta maior só seja respondida ao final. Como de fato acontece. O duelo final com Bill só acontece no último capítulo da obra, nos minutos finais teremos a resposta. 

Mas de Tarantino podemos sempre esperar alguma ruptura. Por exemplo, no Vol.1 já sabemos que O-Ren Ishii já foi morta logo no primeiro capítulo, pelo nome riscado na lista da Noiva, só que ela será o clímax desse primeiro volume. Clímax, já cheguei ao ponto desejado. Clímax é a denominação para um conjunto de acontecimentos que irá resolver as problemáticas da história, faz parte da estrutura de atos. 

Atos é a maneira mais conhecida e usada de estrutura para uma narrativa. Certos tipos de acontecimentos que se espera que  ocorram em determinada parte da história. A estrutura que se mais fala é a de três atos, mas não a usaremos aqui, mas sim a estrutura de quatro atos mais epilogo. Esse modelo resolve o deserto que é o segundo ato, o dividindo em dois. 

Os quatros atos seriam: Set up, Complication Action, Development e Clímax, sendo seguido pelo epílogo. O Set Up dá ao protagonista uma série de objetivos. A Complication Action reformula ou até cancela os objetivos iniciais e termina com um novo conjunto de circunstâncias, servindo como o um contra-Set Up, pois irá bagunçar todas as metas do protagonista. 

O Development inicia geralmente na metade do filme, onde os esforços de atingir os objetivos foram frustrados. Esse ato tende a ser estático, enfatizando subtramas, revelando personagens, ou simplesmente atrasos na resolução dos problemas, cenas de ação podem entrar aqui como brigas e perseguições. Geralmente, esse ato termina com um evento que coloca os objetivos do protagonista em crise, o momento mais baixo na narrativa. E finalmente o Clímax, onde o protagonista consegue atingir seus objetivos ou não. Que é seguido pelo Epílogo, que afirma que foi alcançada uma situação estável. 

Geralmente esses atos possuem a mesma duração. Alguns filmes podem excluir algum ato ou até repetir os atos, ter dois Complication Action, por exemplo. De qualquer  forma é uma modelo baseado na funcionalidade, em grande mudanças na trama e não em número de páginas ou minutagem. Toda história possui seus momentos de maior importância e os momentos secundários, é através dessas diferenças que detectamos as mudanças de ato. 

Aplicando…

Neste caso deixarei as explicações desse modelo de estrutura narrativa para vocês identificarem quando forem ver algum filme. Lembrando que ele funcionará melhor na narrativa clássica de Hollywood. Essa não é o que se chama de Grande Teoria que tenta resolver todos os problemas do cinema, mas sim de médio alcance, que busca responder questões específicas. Prefiro o segundo tipo. 

Existem diversos outros elementos da narrativa que poderiam ser discutidos, mas cobrimos um enorme campo que nos dão várias diretrizes de como os diretores criam as suas narrativas. A construção da história através do enredo e estilo, o processo de narração e a estrutura de atos podem ajudar a responder diversas questões sobre narrativa no cinema. São ferramentas importantes para analisar filmes, e os avaliar, assim como criar as suas próprias histórias, útil também para jovens cineastas, pois tais teorias apresentadas aqui lidam diretamente com o fazer fílmico e as decisões tomadas pelos cineastas.


por Jonathan DeAssis
Instagram: @deassisjonathan

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Jonathan DeAssis
Estudante de mestrado da UFRN. Aspirante a cineasta. Tenta analisar filmes.
Jonathan DeAssis

Jonathan DeAssis

Estudante de mestrado da UFRN. Aspirante a cineasta. Tenta analisar filmes.

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3 anos atrás

[…] No texto passado indiquei o funcionamento da forma narrativa em um filme. […]

trackback
3 anos atrás

[…] Hoje irei me focar nos dois últimos, que inclusive tenho um texto sobre cada aqui no site, Como histórias são contadas no cinema? (teoria sobre narrativa) e Como analisar a fotografia de um filme? (método […]

Alexandre
2 anos atrás

Bacana demais esse artigo, estava pesquisando o assunto na
internet e acabei achando esse site… Muito Legal!!!

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