A segunda temporada de Fleabag se consagrou a grande campeã nas categorias de comédia do Emmy 2019, conquistando seis prêmios. O primeiro episódio dessa temporada levou sozinho três estatuetas, melhor direção, roteiro e edição. E é justamente este episódio que será o objeto de nossa análise. Aqui focaremos nos aspectos do Estilo Fílmico, todavia, irei começar a análise a partir de um aspecto do estilo que não saiu vitorioso naquela noite,embora indicado. Falemos sobre a Cinematografia. 

A cinematografia envolve tudo relacionado a câmera e lentes, ou seja, os aspectos fotográficos do plano, o enquadramento, mobilidade do quadro, duração do plano. Uma particularidade inicial a ser notada nesse episódio é a quase inexistência de movimentos de câmera. Por qual razão o diretor, Harry Bradbeer, tomou tal decisão? Podemos começar a suspeitar pela escolha do formato de tela, o widescreen anamórfico, com relação de aspecto de 2,35:1. Mas o que seria isso? 

A relação de aspecto é a razão entre largura e altura do quadro. Essas dimensões foram mudando no decorrer da história do cinema. O formato 1,33:1 foi o padrão no período mudo, depois modificado para 1,37:1 para abrir espaço para a  trilha sonora na película, sendo esse o formato da academia. Nos anos 50, depois da decisão da corte americana de proibir os estúdios de possuírem seus próprios cinemas (lei antitruste), e a guerra contra a TV intensificar, os formatos widescreen surgiram, uma forma de trazer o público de volta, exibir algo que a TV jamais poderia fazer, foi nessa época  também o surgimento do 3D. CinemaScope foi o processo widescreen mais famoso, é este que possui o aspecto 2,35:1 usado por Fleabag. O CinemaScope não teve vida longa, teve seus auge e decadência ao decorrer de cinco anos, mas seu impacto foi permanente na indústria de Hollywood.

Hoje em dia o formato widescreen mais usado no cinema e na TV é o 1,85:1. Por que então utilizar o formato Scope (chamarei a partir daqui o anamórfico 2,35:1 assim) em Fleabag? Vamos tentar descobrir as funções do Scope no premiadíssimo  Episode 1. Primeiro, a premissa dramática, o enredo se passa inteiro em um jantar, são seis personagens em uma mesa num restaurante. Esse é o primeiro problema a ser resolvido pelo diretor: como posicionar estrategicamente os atores para intensificar as relações entre sim? Como filmá-los? E como a escolha do formato Scope vai influenciar tais decisões de encenação e fotografia? 

Nos anos 50, o  CinemaScope trouxe consigo diversos problemas quanto enquadramento e encenação, as alterando, fazendo os diretores se adaptarem e trazerem novas soluções. O close-up ou planos mais próximos se tornaram uma dificuldade, deixando muito espaço vazio na tela (Figura 1), a câmara devia estar no mínimo a 2m10cm dos atores. A solução foi fazer vários close-ups no mesmo plano, criando assim planos compostos, para que um se podemos ter três? E o que Fleabag faz (Figuras 2-3-4), várias cabeças! Outra solução é o plano OTS, sobre o ombro (Figura 5) ou trazer um dos atores pra extremamente perto da câmera (Figura 6), se tornando quase um borrão,  para que possamos prestar atenção no outro ator, sendo o mais próximo do close-up, um padrão estilístico usado ao longo de todo o episódio. Tocamos num ponto extremamente importante do cinema e do trabalho do diretor: direcionar a atenção do público. 

Figura 1 Vazios do Close-up
Figura 2 Espaço fílmico preenchido com diversos atores
Figura 3 O espaço pode ser preenchido com menos atores, quando um está mais próximo da câmera
Figura 4 – Mesma estratégia do plano anterior, destaquemos o uso do foco e a encenação em diagonal
Figura 5 – Plano OTS, guiando o olhar para Fleabag, olhamos naturalmente para os rostos de frente
Figura 6 – Com Fleabeg extremamente próximo a câmera se elimina os espaços vazios e se cria o close-up do formato Scope

O leitor pode perceber nos planos o uso do foco seletivo, é uma das técnicas utilizadas pelo diretor para direcionar o olhar do público dentro do plano. Formatos Scope possuem baixa profundidade de campo, ou seja, nem todas as figuras no plano estarão em foco, tal problema pode virar uma solução com o uso do já citado foco seletivo. Nas figuras 3 e 4 podemos ver a personagem Fleabag em foco, enquanto os outros não estão. Na verdade, o foco do plano começa nos outros, durante o plano é trocado  para ela, é uma maneira do diretor direcionar nossa atenção, outro padrão usado ao longo de todo o episódio. 

O que podemos perceber desses dois planos é que a Fleabag sempre tá no extremo do plano e mais próximo da câmera, são práticas de encenação alteradas pelo Scope. Como a profundidade de campo do Scope é baixa, a encenação em profundidade, estilo liderado por Orson Welles (Cidadão Kane, Figura 7) nos anos 40, se torna complicada. Os cineastas dos anos 50 tiveram que recorrer ao outro tipo de encenação, o estilo Tableau era uma opção, os atores ficam lado a lado, com o corpo levemente inclinado para a câmera, era uma encenação em fila, roupas no varal (clothesline, Figura 8), o que não agradou aos diretores, parecia uma regressão ao cinema mudo. A encenação em diagonal (ou recessiva)  se mostrou uma opção viável, a que o episódio usa em sua maior parte. 

Figura 7 – Deep Focus em Cidadão Kane
Figura 8 – Encenação em linha em filme dos anos 50, filmado no original CinemaScope

Fleabag se utiliza da encenação em fila (figura 9), podemos perceber a quantidade de espaço vazio no plano, noutros momentos temos menos espaço vazio com planos mais fechados (Figura 10),  mas o que predomina em Fleabag é a encenação em diagonal. Reveja as figuras 3 e 4. Fleabag está mais próxima da câmera, primeiro plano, e nas laterais do quadro, ocupando assim boa parte do plano, enquanto os outros atores ao fundo, não deixando o espaço vazio da encenação em linha, isso se dá pela espaço fílmico piramidal, imagine um triângulo deitado com a ponta voltada para a câmera, quanto mais próximo um objeto estiver da câmera mais espaço ela irá ocupar.

Figura 9 – Encenação em linha
Figura 10 – Encenação em linha

Pelo tamanho da tela Scope, muita informação pode ser adicionada no plano, buscando técnicas para preencher os vazios deixados, como Fleabag o faz neste episódio. A encenação em diagonal de Fleabag faz o espectador percorrer o olho por todo o quadro, sendo a troca de foco  fundamental na absorção da informação do plano, justamente pela velocidade dos cortes. O que era recomendado aos filmes Scope nos anos 50 era que os planos fossem mais longos, evitar cortes rápidos, para que o espectador pudesse absorver toda a informação do plano, mas não é o que ocorre aqui. Aliás os cortes em Fleabag são rápidos, em certos momentos muito rápidos, utilizando as trocas de olhares para direcionar os cortes, algo a se admirar na técnica do diretor. Chegamos finalmente à montagem, que também é afetada pelo formato da tela.

Já citamos várias técnicas de encenação e fotografia usadas pelo diretor para direcionar a atenção do público, como as figuras em primeiro plano cobrindo metade da tela, os planos sobre o ombro, o foco seletivo, todas fazem o espectador olhar diretamente para o que o diretor quer, assim podendo cortar mais rápido, sem a perda de compreensão da narrativa. O corpo dos atores também é usado para direcionar a atenção, se um ator está de lado e o outro olhando para frente a tendência é que olhemos para o segundo, usado também aqui (Figura 11), o movimento dos atores também serve a esse propósito, como nas diversas vezes que Fleabag se vira e fala diretamente com o público (Figura 3-4), ou quando novos personagens entram em cena, como é o caso da garçonete que constantemente serve vinho ( Figura 12) ou nesse caso das escadaria (figura 13-14), tendo outros momentos ao decorrer do episódio que isso acontece. Ou o próprio vazio pode ser usado pelo diretor para compor o plano (Figura 15).

Figura 11 – A posição dos corpos dos atores direciona a atenção
Figura 12 – Movimentos e entrada de novos atores puxa a atenção do público. Veja como Fleabag está fora de foco no primeiro plano, mas mesmo assim cumpre função importante
Figura 13 – Escadas e portas podem ser usadas para entradas de novos personagens e assim atrair a atenção para outro plano do plano…
Figura 14 – …como nesse caso.
Figura 15 – O vazio como parte da composição do Scope.

A intenção do texto foi demonstrar como a simples decisão do formato de tela afeta diversos aspectos do estilo cinematográfico, e que tais escolhas geram problemas que devem ser resolvidos pelos diretores. Toda escolha estilística vai gerar sua própria parcela de problemas a ser resolvidos, parte do trabalho do diretor pode ser resumido em como resolver problemas de representação na tela, que podem ser solucionados com esquemas já conhecidos ou outros mais criativos. Uma simples cena de um jantar pode ser tão cinematográfica quanto uma batalha interplanetária, ou até mais.

 


por Jonathan DeAssis
Instagram: @deassisjonathan

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Jonathan DeAssis
Estudante de mestrado da UFRN. Aspirante a cineasta. Tenta analisar filmes.
Jonathan DeAssis

Jonathan DeAssis

Estudante de mestrado da UFRN. Aspirante a cineasta. Tenta analisar filmes.

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4 anos atrás

[…] como sempre, algumas coisas antes. O filme abre orgulhoso do seu formato de tela em CinemaScope (tem texto aqui sobre!) com aspect ratio de 2.55:1. Sim, estamos falando sobre Enquadramento. A escolha do formato de tela […]

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4 anos atrás

[…] quando se está usando uma teleobjetiva. Comentei largamente sobre esse princípio nas análises de Fleabag e Parasita, que podem ser conferidas aqui no site. Irei me voltar então para o uso da […]

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